Correio da Manha - Domingo

ABSTENÇÃO E ÁGUA BENTA...

- VICTOR BANDARRA JORNALISTA ANTIGA ORTOGRAFIA

É um homem de idade, pose altiva, que espera para votar para as Europeias numa mesa da Grande Lisboa. Pela mão, uma menina dos seus 7 anos. Tagarela, vai espicaçand­o o avô. “Vais votar em quem? Diz lá! Posso escrever a cruz?” Percebe-se que a criança está informada sobre estas coisas de votos e eleições, escolhas e decisões. O avô, embevecido, dá-lhe trela. “Ó menina! O voto é secreto! Se calhar até vou votar em branco! Mas devia era abster-me!” E a menina a insistir. “Ó avô! O que é abster?” Um dos primeiros grandes adeptos da abstenção foi Pilatos, procurador daprovínci­a romana da Judeia. Ficou para a História como tendo dito “daí lavo as minhas mãos”, quando lhe perguntara­m sobre quem se deveria libertar da Cruz, o bandido Barrabás ou Jesus Cristo. E assim fez, diplomata, lavando logo ali as mãos. Pilatos absteve-se, mas alguém votou a favor da crucificaç­ão de Cristo. E nada ficou como dantes, até porque abstenção e água benta, cadaumtoma­aque quer! Emportugal, a abstenção faz escola, sobretudo para as eleições europeias. Desta vez, chegou aos 68,6%, a quarta maior da União Europeia (se bemque haja mais 1 milhão de votantes lusitanos). Numa Europa a braços com populismos, nacionalis­mos e outros ismos, a votação até teve forte subida em França, Reino Unido e Espanha. Ar sério, o avô votante talvez medite na atitude de Pilatos e sobre quem é que deve sacrificar nestas eleições. Aneta, espevitada, insiste na lenga-lenga. “Avô! Vais votar para quê?!” Em volta, há sorrisos ternurento­s. “Ó querida! Ainda não sei bem em quem, quanto mais paraquê!!” Aabstenção, naeuropa, é um direito. Quanto aos votos brancos ou nulos, representa­m outros tantos direitos, pessoais e intransmis­síveis. O voto nulo já foi bandeira ideológica de vários movimentos, sobretudo anarquista­s. Anular o voto, para alguns, significa negar a entrega da liberdade pessoal nas mãos de umlíder ou de umpartido. Como defendeu o filósofo francês Pierre-joseph Proudhon: não há grande diferença entre um rei tirano e umditador eleito. Emportugal, no pós-25 de Abril, houve partidos que defenderam a “anulação do voto com inscrição revolucion­ária”. E muitos “contadores de votos” sorriam ao lerem no boletim frases anarquista­s como “Abaixo os organismos de cúpula! Vivam os orgasmos de cópula!” ou “Cuidado Cunhal! Os índios eram vermelhos e lixaram-se!” Para além de mensagens tão prosaicas como “vão-se f.!” ou “ninguém há-de calar a voz da classe operária!”

Com a neta ao colo, o avô entra na câmara. De repente, a voz da criança. “Ó avô! Está mal escrito!” Silêncio na sala. “Cala-te menina!” E a miúda a insistir, condescend­ente. “AVÔÔO! Não é VIVÓ Benfica! É com A! É VI-VA o Benfica!” O velho acaba a meter o seu boletim na urna, encarnado por dentro e por fora.

Um dos primeiros grandes adeptos da abstenção foi Pilatos…

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