“AINDA HOJE TRAGO A GUERRA COMIGO NO CORPO E NA ALMA”
Em Moçambique fui retirado duas vezes em coma para o hospital e só por milagre, acredito, não morri
Embarquei no ‘Vera Cruz’ no dia 25 de abril de 1970 sem imaginar o quanto a guerra iria mudar a minha vida. Um desgraçado que andou a dar a vida pela pátria - diziam que aquilo era nosso - e, como eu, tantos camaradas, com tantas outras histórias. Há milhares de excombatentes que nem sabem como estão cá hoje. Como eu, que fui por duas vezes retirado em estado de coma para o hospital durante a guerra, tanto que ainda hoje não sei como saí vivo do Ultramar. Foi um milagre. O primeiro episódio aconteceu logo no início da comissão, devia ter passado pouco mais de um mês da nossa chegada. O desastre foi perto da Barragem de Cahora Bassa. Foram dar comigo lá no meio do monte, no capim, dizem que parecia morto. Ouviram-se tiros dentro e fora da picada e foi tudo pelo ar, por causa das minas. Fui levado
ao hospital com um traumatismo craniano e muitas outras mazelas e estive internado mais de dois meses. Saí do hospital muito debilitado e meses depois ainda andava a coxear. De tal forma que os meus amigos – éramos todos amigos – levavam-me o rádio (eu era de transmissões) para não ir carregado. Mesmo assim eu ainda tinha de levar seis ou sete cantis de água, as cartucheiras, a G3, granadas e uns farrapos para dormir, pois de noite era um cacimbo que até cortava o coração. Mas às dez da manhã já estavam 30 e tal graus e à hora de almoço passava dos 40. No Ultramar, nesse primeiro rebentamento, parti a clavícula, a cana do nariz, os dentes, o pé direito em dois ou três sítios; ainda tenho estilhaços na rótula do joelho esquerdo, já o direito parecem dois joelhos por causa de uma queda que dei. Foi quando me atirei de uma Berliet para baixo para me safar, porque tinham começado a chover tiros. Fiquei com a coluna num oito e ainda hoje doem-me os joelhos e o pé.
Em dezembro de 1970 apanhei malária cerebral e pela segunda vez fui retirado. Antes de atacarmos uma base fui encher o cantil num charco, tal era a sede. Comecei depois a sentir frio, diarreia, dores de cabeça, desmaios e estive internado seis meses, num quarto sozinho, com duas garrafas de soro, uma de cada lado. Aquilo foi um horror e ainda hoje sinto dores de cabeça à conta disso. Quando regressei trouxe metade da guerra comigo. Aminha mulher toda a vida ouviu-me falar da guerra. A guerra está comigo até hoje, no corpo e na alma, é impossível ultrapassar uma coisa assim, é impossível não lembrar.
O regresso
Regressei no dia 21 ou 22 de maio de 1972 a Portugal, uma pessoa completamente diferente da que fui. Quando cheguei, fui trabalhar para um hotel em Albufeira. Uma vez houve lá umafesta dos pescadores, em que começaram a mandar tiros e eu, que estava a servir os estrangeiros, mandei-me logo para o meio do chão - foi pratos, vidros, tudo pelo ar. Era a guerra ainda atrás de mim.
Já liguei muitas vezes para o Ministério da Defesa mas dizem que não há nexo de causalidade entre os problemas que tenho e o que lá
Começaram a chover tiros e eu atirei-me de uma Berliet abaixo e fiquei muito maltratado: parti uma clavícula, o pé, o nariz, os dentes...
Vim de lá marcado e nada me deram em troca
passei em Moçambique. Olham para mim como se vissem um pobrezito qualquer. Os meus processos têm andado de associação em associação, de hospital em hospital, e nada.
Ganho uma reforma de trezentos euros, tenho uma filha deficiente que precisa de fraldas e de medicamentos, que ganha duzentos e poucos euros, mais os cento e pouco ganhos pela esposa - é muito pouco para conseguir fazer face às despesas mensais que são mais do que muitas em medicamentos e hospitais. Eu gostaria de dar um pouco mais de conforto a esta inocente que aqui tenho: a minha menina de 39 anos.
Ninguém olha para mim, que servi a pátria como me pediram e de lá vim marcado sem que nada me tenham dado em troca. Nem a mim nem aos camaradas que de lá vieram iguais.