A escrita livre e arejada de José Cardoso Pires não dispensava o erotismo. Mesmo quando a Censura lhe apreendia os “contos de misérias sociais em que o aspeto sexual se revela indecorosamente”
“Misérias sociais em que o aspeto sexual se revela indecorosamente”
José Augusto Neves Cardoso Pires (1925-1998) escreveu contos, novelas e romances em que a narrativa, livre e arejada, não dispensa a carga erótica -
o que foi devidamente registado pela Censura ao classificar, em 1952, ‘Histórias de Amor’ como “contos de misérias sociais e em que o aspeto sexual se revela indecorosamente. A proibir”. O escritor nasceu em S. João do Peso, Vila de Rei, mas desde muito novo foi viver com a família para Lisboa. Fez os estudos secundários no Liceu Camões e entrou para o curso de Matemáticas, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que não completou. Embarcou como praticante de piloto na marinha mercante, mas foi afastado por “suspeito de indisciplina”.
Publicou o primeiro livro, ‘Os Caminheiros e outros Contos’, em 1949. Além de escritor foi editor e jornalista. Entre 1959 e 1961 coordenou a revista ‘Almanaque’ e nos anos 60 e 70 ganharam popularidade as suas crónicas no ‘Diário de Lisboa’.
Na ‘Cartilha do Marialva’ (1960) usou o ensaio para traçar, com muita ironia, a caricatura de uma figura típica da sociedade portuguesa da época, cuja mentalidade sai arrasada do livro. A personagem do marialva - “vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa” - está na base do romance ‘O Delfim’, publicado em 1968 e considerado não só a obra-prima de Cardoso Pires, mas um dos livros mais importantes da literatura portuguesa do século XX. Ganhou prémios, foi condecorado e é nome de rua e de escola.
Vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa
Sentiu o calor a aflorar-lhe a boca do corpo e a penetrá-la um tudo-nada
Do livro ‘Alexandra Alpha’, Publicações Dom Quixote
“(...) ‘Sobe para esta cadeira e vai-me pas
sando os livros’, ordenou-lhe Bernardo Bernardes. Ela subiu e começaram pela prateleira mais alta da estante, livro abaixo, aspirador, livro acima, arrumação: a bibliofilia como ménage cultural. A moça, apesar de ser jovem, implantava-se numas pernas grossas de mais para a magreza do corpo. E peludas: quando o tubo do ‘bibliovent’ passava de perto por elas, os pelos eriçavam-se e Bernardo podia ver a pele branca a encrespar-se num arrepio.
(…) A páginas tantas, pelo meio do desfolhar começou a tremeluzir uma chamazinha qualquer nos vislumbres de Bernardes. ‘Quieto, que a mamã pode vir. Quieto, senhor doutor’, avisou a criadinha. Mas ele, pois sim, tinha-a enlaçado pelas coxas e não a deixava sair de cima da cadeira. E regulando o calor e a potência do jato, enfiava-lhe o tubo do aspirador pelas pernas acima, procurando abri-las, forçá-las. Pernas que a todo o custo a moça tentava manter unidas para escapar àquele respirar morno que subia por ela toda e que já lhe procurava os segredos das virilhas. Aí encolhia-se e ameaçava (...), mas o tubo não desistia, o tubo revolvia-lhe o alvoroço do púbis, respirando nele e progredindo. ‘Oh-oh, não querem lá ver?’ protestava ainda a rapariga, mas era uma voz a abrandar, a ceder, vencida pela curiosidade. Tão branda, tão sem vontade, que emudeceu quando as pernas se descontraíram e sentiu o calor a aflorar-lhe a boca do corpo e a penetrá-la um tudo-nada, um tudo-nada, a avançar e a moderar-se em movimentos regulares comandados pela mão de Bernardo.
‘Se te aleijar avisa’, dizia ele cá de baixo, com a cabeça encostada ao ventre da moça como se a estivesse a escutar por dentro. (…) Enquanto isso um seio, o bico dum seio, desceu ao rosto do homem afagandolhe as pálpebras, aflorando-lhe os lábios, introduzindo-se. Determinado, laborioso. Ela fitava esse esporão, essa ponta densa e crespa que lhe estava a oferecer, que o penetrava e se aquecia no desespero ardente que o habitava. (...)”
Do livro ‘Histórias de Amor’, Edições Nelson de Matos
Week-end “(…) Beijavam-se, e de novo tombavam para o lado e ficavam assim, as bocas entreabertas, os olhos a luzirem. (…) O moço suava, o suor corria-lhe no queixo e nas axilas misturado com a saliva dos beijos. (…) - Querido, segredou ela; e sorria. Então ergueu-se no leito, limpando-o carinhosamente com a ponta do lençol enquanto ia dizendo ‘querido, oh, querido’ e deixava que os dedos dele lhe percorressem ao de leve o corpo. (…) Tinha nesse momento os lábios húmidos no peito dele e abanava ainda a cabeça de um lado para o outro. (…) Voltou-se lentamente. Lá estava ela, ainda no leito, com uma perna abandonada entre os lençóis. (…) Assim ficou, sem um movimento. Até que os lábios da rapariga voltaram a abrir-se diante dele e novamente os apertou nos dentes. E foi como se respirassem de vez, as bocas sangrando, o sabor do baton e o cheiro a laranjas antigas, os cabelos sem cor diante do sol.”