A SAGA DA FAMÍLIA ESPANHOLA QUE PORTUGAL VAI INDEMNIZAR
Sonharam transformar Miraflores numa urbanização de luxo, mas os planos ruíram com a revolução. País deve-lhes 4 milhões
Numa resolução do Conselho de Ministros publicada no Diário do Governo n.º 72/1975, de 26 de março - no rescaldo do ‘golpe’ de 11 de março de 1975, que abriu caminho às nacionalizações -, o então primeiro-ministro Vasco Gonçalves assinou uma decisão que viria a ter repercussões mais de 40 anos depois. A resolução defendia a expropriação dos terrenos da família espanhola Peña Mechó, então radicada em Portugal, ditava o congelamento provisório dos seus bens e a entrega das empresas do Grupo Habitat, por ela fundada, a uma comissão de trabalhadores. Na passada terça-feira, 4 de junho de 2019, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos fixou em quatro milhões de euros a indemnização que Portugal terá de pagar a esta família no litígio com 30 anos relacionado com a expropriação de terrenos na freguesia de Miraflores:
21 mil euros por danos morais e 400 mil euros por honorários e gastos. Joaquín Peña Mechó e Pilar Díaz Peña, oriundos da América do Sul, não assistiram à vitória judicial: o patriarca morreu algures entre o final dos anos 80 e o início da década de 90, e a mulher, acionista da Rádio Renascença e da TVI no arranque da televisão privada, morreu mais recentemente – já nesta década. Deixaram cinco filhos, um deles ainda administrador do grupo que o pai fundou (e que tentámos contactar sem sucesso). A família não terá celebrado junta os milhões que o tribunal decretou serem deles: a relação entre os irmãos deteriorou-se depois da morte do patriarca.
Condomínio de luxo
Miraflores, na freguesia de Algés, era um amontoado de terrenos agrícolas no início dos anos 60, quando foi constituída a sociedade Habitat – presidida por Joaquín Peña Mechó – que se propunha desenvolver a Urbanização do Vale de Algés, além de apresentar um plano de realojamento do bairro de Santa Marta e Pereiro/quinta das Romeiras. Num discurso de 1973, Peña Mechó referiu ter entregue “48 mil contos para resolver o problema das barracas que envolvem a cidade de Lisboa”. Enquanto isso, a urbanização de luxo ia de vento em popa. O conceito bebia inspiração nos bairros de Madrid – em que a urbanização era fechada sobre si – e acrescentava aos apartamentos modernos infraestruturas como ‘courts’ de ténis, piscina e – uma novidade para a época – garagens subterrâneas.
“A urbanização vinha desde Linda-a-velha até Algés. Em 1969 foi construído o primeiro prédio e até ao 25 de abril o que foi implementado foi de acordo com o projeto inicial. As pessoas que vieram viver para Miraflores eram capitães, majores, tenentes, advogados, juízes, o senhor Peña tentou que fosse uma coisa cinco estrelas. A urbanização estava projetada para ser um grande condomínio fechado”, partilha Rui Teodósio, filho da terra e estudioso da história da localidade. Já João Lagos, antigo campeão de ténis e líder do Estoril Open durante 25 anos, chegou a privar com a família. “O velho Peña Mechó foi amigo do meu pai, que lhe tratava dos seguros, se não me engano de barcos de transporte e mercadorias, entre
“Faliu várias vezes e várias vezes se reergueu JOÃO LAGOS, EMPRESÁRIO
Matriarca sonhou com a igreja de Miraflores e deu dinheiro
outros negócios. Contava o meu pai, elogiando o cliente e amigo, que o senhor Peña tinha falido várias vezes e sempre se reerguia e seguia em frente, refazendo uma grande fortuna”, recorda Lagos, que chegou a construir e gerir quatro ‘courts’ de ténis num terreno da família Peña.
Depois do 25 de abril, o empreendimento foi considerado uma urbanização elitista (“fascista”, na linguagem da época) – ou, nas palavras da tal resolução do Conselho de Ministros, “as empresas do Grupo Habitat (...) não se encontram a funcionar em termos de poderem contribuir normalmente para o desenvolvimento económico do País e para a satisfação dos interesses superiores da coletividade nacional”. A matriarca Pilar Moreno Díaz Peña, que dá nome a prémios culturais ligados à embaixada espanhola e chegou a receber a medalha de ouro da autarquia de Oeiras para a justiça social, morreu sem ver de pé a obra com que tanto havia sonhado. Quando a Igreja da Santíssima Trindade de Miraflores foi inaugurada, em maio de 2015, a espanhola, católica fervorosa, já tinha morrido. A obra foi por ela imaginada desde 1962, quando aparece a primeira referência a esta ideia. Ela e o marido chegaram a doar dinheiro para a construção da igreja e tiveram um gesto de que a comunidade nunca se esqueceu: cederam a cave onde durante anos se reuniu a comunidade de Miraflores para ouvir a palavra de Deus.