UMA FAMÍLIA QUE ACABA DE SER SALVA
O meu avô Álvaro Jorge de Sousa Homem, administrador de quintas no vale do Douro, era leitor de Benjamin Disraeli e recebeu de um cliente, tão fora de moda como ele, um retrato emoldurado da Rainha Vitória. O poeta Guerra Junqueiro (com quem se encontrava bastantes vezes no final do Verão, já depois das vindimas, no cenário crepuscular de Barca d’alva) não conhecia o senhor Conde de Beaconsfield, autor de ‘Endymion’, porque era leitor de Victor Hugo (e achava, na sua ingenuidade, que uma coisa excluía a outra), mas invejava o retrato da rainha que Disraeli serviu, tanto quanto detestava o filho, Eduardo VII. Neste parágrafo há bastantes desencontros ideológicos, como agora se diz – mas são eles que fazem a constância da nossa família, uma tribo de gente do Alto Minho que alberga todo o género de memórias e quase todo o género de propensões para o dislate, desde a paixão do Tio Henrique pelo oboé e pela História Militar, quanto o republicanismo risonho do Tio Albano Estêvão ou o ultramontanismo da Tia Benedita, a matriarca miguelista dos Homem.
O Tio Alberto, gastrónomo e bibliófilo romântico de São Pedro de Arcos, costumava dizer, naquele ínterim que ia do leite-creme e do arroz doce ao café tomado sob o alpendre do velho casarão de granito de Ponte de Lima, que lhe parecia uma família dos filmes italianos – muito palradora, com queda para o sentimentalismo político, cheia de escândalos que apreciava com discrição e condescendência. Só o velho Doutor Homem, meu pai, escapava a essa definição: ele via esta família como uma comédia ligeira, simpática e inofensiva, num país que se levava demasiado a sério e, portanto, não podia compreender nem a leveza nem a solenidade das coisas. Aprisionado ao escritório do Porto, que assegurava o sustento da sua família, entregue às minúcias do direito bancário, à ordenação da sua biblioteca de poetas românticos ingleses eàcolecçã ode discos de ópera, o velho Doutor Homem, meu pai, teria sido o único romancista da família, se lhe sobrasse tempo. Não sobrou. Em vez disso, cultivou uma tolerância que, felizmente, se estendeu até aos nossos dias eàqua la penas escapa a devoção pelas coisas antigas e pela memória dos nossos erros e questões de fé. Na semana passada, com aquela onda de calor a crestar os arvoredos de Moledo e da estrada de Caminha, a minha sobrinha Maria Luísa (a eleitora esquerdista da família) sugeriu que era necessário mandar limpar a moldura do retrato do Senhor Dom Miguel. Pelo sim, pelo não, juntou-lhe a fotografia da Rainha Vitória, que a Tia Benedita achava demasiado metediça. Estamos salvos.
“(...) juntou-lhe a fotografia da Rainha Vitória, que a tia Benedita achava metediça