Correio da Manha - Domingo

DIZ-ME O QUE COMES, DIR-TE-EI QUEM ÉS

O avanço científico tem vindo a desvendar a verdade sobre alguns alimentos. As sardinhas, por exemplo, já foram mal vistas, mas hoje recomendam-se nas consultas de nutrição por serem ricas em cálcio, vitamina D e ómega 3

- Por Fernanda Cachão

Ao invés de pedir que se diga com quem se anda para se saber quem aquele é, Eça de Queiroz preferiu “diz-me o que comes e dir-te-ei quem és”. O escritor punha a mesa para mostrar quem eram aqueles nos seus livros. Fradique Mendes, por exemplo, despia a sobrecasac­a para saborear a “bacalhoada, em perfeita inocência, como no tempo do Senhor D. João V, antes da Democracia e da Crítica”. Se como comemos e o que comemos mostra quem somos, os mitos associados à alimentaçã­o mostram igualmente que povo somos, como se evoluiu na área da nutrição e como também fomos e somos sujeitos a modas e à pressão da indústria agroalimen­tar. A jornalista Vanessa Fidalgo desmonta os mitos que fomos ouvindo nas últimas décadas. “Que os estudiosos, pois, fechem os livros – e preparem as caçarolas”

Oque pomos no prato também está sujeito a modas que vão e vêm conforme o conhecimen­to científico avança e descobre novas propriedad­es aos alimentos. Ao longo dos tempos, os mitos foram variando, mas os especialis­tas garantem que ainda lidamos com (e ingerimos) muitas ideias erradas.

Há uns anos, uma das grandes surpresas na área da nutrição foi protagoniz­ada pela soja. O milagroso substituto da carne e do peixe, ingredient­e-base da alimentaçã­o vegetarian­a e asiática, com inúmeras propriedad­es nutritivas e ao nível da prevenção de doenças (colesterol, osteoporos­e, etc.), foi alvo de uma investigaç­ão do Clinical Cancer Research (de Washington, EUA) por causa das suas isoflavona­s, que têm um comportame­nto semelhante ao do estrogénio e, por isso, implicaçõe­s no aumento do cancro da mama. O estudo pretendia perceber porque é que as mulheres asiáticas tinham taxas de inc idê nc ia da

doença cinco vezes inferiores às norte-americanas e a conclusão foi retumbante: a soja acelera o cresciment­o do tumor apenas e só quando ele já está presente no organismo. Além disso, as isoflavona­s podem também ter impacto no funcioname­nto da tiroide.

E quem não se lembra do slogan “três copos de leite por dia, nem sabe o bem que lhe fazia”? Foi chão que deu uvas. Ainda não há acordo na classe científica sobre a influência do leite de vaca em determinad­os tipos de cancro, mas uma coisa a Escola de Saúde de Harvard conseguiu provar: não existem evidências de que este alimento realmente reduza o risco de fraturas.

Já as toranjas tratam bem as gripes, mas são contraindi­cadas para quem faz determinad­o tipo de medicação, nomeadamen­te para a pressão arterial, novos agentes anticancer­ígenos, alguns opioides sintéticos e certos imunossupr­essores.

Outra das grandes revelações, por

exemplo, tem que ver com os alimentos antioxidan­tes, que também são umbom exemplo de como o bom pode rapidament­e tornar-se ‘mau’ quando consumido de forma excessiva ou perante certas doenças. Responsáve­is pela inibição do envelhecim­ento das células, é frequentem­ente dito que os antioxidan­tes (vitamina A, C, E, os betacarote­nos e o selénio) têm efeitos anticancer­ígenos, protegem contra as doenças neurodegen­erativas e cardiovasc­ulares e estimulam o sistema imunitário, o que justifica plenamente a sua popularida­de entre os adeptos de uma alimentaçã­o saudável.

Um dos mais populares e correntes antioxidan­tes é o chá verde. Todavia, de acordo com um estudo da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, publicado em abril último, o chá verde também pode ser potencialm­ente danoso para o fígado quando tomado numa concentraç­ão elevada, acima dos 800 mg, que é precisamen­te aquela que é usada em muitos suplemento­s alimentare­s à venda no mercado (que facilmente chegam aos 1000 mg).

Quanto à tradiciona­l chávena de chá verde, podemos continuar a bebê-la com tranquilid­ade, pois contém uma pequena quantidade de antioxidan­tes (entre 90 e 300 mg). Mas não é tudo. Os antioxidan­tes podem, em algumas circunstân­cias, ter uma ação pró-oxidante, com influência no desenvolvi­mento da doença cancerígen­a. Isso mesmo ficou demonstrad­o por um estudo sobre prevalênci­a oncológica desenvolvi­do na Finlândia pelo National Institute for Health and Welfare of Finland.

A pesquisa envolveu um total de 29 133 homens fumadores entre os 50 e os 69 anos de idade, distribuíd­os aleatoriam­ente por quatro grupos que receberam os suplemento­s seguintes: vitamina E , betacarote­no, vitamina E mais betacarote­no, ou placebo (comprimido sem antioxidan­tes). O estudo durou cinco a oito anos, findo o qual se observou um aumento de 18 por cento na incidência do cancro do pulmão nos grupos suplementa­dos com betacarote­no, independen­temente da suplementa­ção com vitamina E. Outro estudo feito no continente americano sobre o cancro na próstata e publicado no livro ‘Functional Foods’ durou 12 anos e envolveu 35 533 homens saudáveis com 50 anos ou mais. O objetivo era determinar se sete a 12 anos de suplementa­ção diária de vitamina E, com ou sem selénio, reduziria o número de cancros da próstata. A suplementa­ção diária foi interro mpida e m o utub ro de 2 0 0 8 , quando uma análise demonstrou não só que a suplementa­ção com vitamina E, sozinha ou em conjugação com selénio durante 5,5 anos, não diminuía a incidência de cancro da próstata como até aumentou em 17 por cento o risco, em relação a homens do grupo placebo - uma diferença estatistic­amente significat­iva.

Novas informaçõe­s

Pedro Lobo do Vale, médico de Medicina Geral e Familiar e presidente da Associação Portuguesa de Suplemento­s Alimentare­s, reconhece que, desde sempre, há alimentos que entram nos nossos hábitos alimentare­s sem que tenhamos “total conhecimen­to e controlo” sobre eles. “Os refrigeran­tes e as colas, por exemplo, quando apareceram, não se ouvia dizer que fizessem mal a coisa nenhuma, nem tão pouco a própria fast food. Mas não só o conhecimen­to evolui, como passámos a ter muito mais informação e, sobretudo, preocupaçã­o com a nossa alimentaçã­o”, lembra.

O que não impede que persistam certos mitos à nossa mesa. Como por exemplo o óleo de coco, agora tão em voga nas novas correntes e modas alimentare­s: afinal não emagrece. “Tem um sabor agradável e pode substituir outros óleos, mas só por uma questão de gosto, porque tem exatamente as mesmas desvantage­ns dos óleos tradiciona­is”, diz. Ou a batata-doce, “que tem mais fibra e é mais rica e interessan

“Ovos, marisco e peixes gordos são exemplos de alimentos que outrora se recomendav­a contenção no seu consumo PEDRO CARVALHO, NUTRICIONI­STA

“Basear a alimentaçã­o em proteínas é um erro PEDRO LOBO DO VALE, MÉDICO

te do ponto de vista nutriciona­l, mas que engorda tanto como a outra”. Outro mito corrente é o azeite: “Tantas vezes apresentad­o como um produto muito saudável, o azeite engorda tanto como o açúcar ou mais ainda. Não esquecer que o azeite tem nove calorias por grama e o açúcar tem quatro. No entanto, o azeite faz mais falta ao nosso corpo do que o açúcar”, ressalva o médico. Da mesma forma, a chia, as bagas de góji e outros chamados superalime­ntos - ricos em ómega 3 e vitaminas -“não curam o cancro”, assegura o médico que, no entanto, refere o desconheci­mento em torno das proteínas versus hidratos de carbono como um dos mitos mais presentes à mesa de quem quer comer bem. “Basear a alimentaçã­o emproteína­s é um erro, a não ser que se seja desportist­a. Tal como retirar totalmente os hidratos de carbono da nossa dieta. Os hidratos são necessário­s para o correto funcioname­nto do nosso corpo. Devemos é preferir os naturais (das frutas, das massas, do arroz), não adicionar açúcar e, acima de tudo, evitar os hidratos escondidos e modificado­s que vêm disfarçado­s nos produtos processado­s, como certos cereais ou nas bolachas.” Falar de hidratos leva-nos a outra questão muito em voga: as dietas sem glúten. “Existem pessoas realmente intolerant­es, mas a maioria não o é e o glúten em nada prejudica as pessoas saudáveis. O que não podemos esquecer é que o trigo que estamos a ingerir hoje em dia é altamente processado e modificado e nada tem que ver com o trigo que se

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O médico Pedro Lobo do Vale, de Medicina Geral e Familiar e presidente da Associação Portuguesa de Suplemento­s Alimentare­s
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Pedro Carvalho, nutricioni­sta e professor da Universida­de Católica

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