Correio da Manha - Domingo

A INTELIGÊNC­IA DA MALVADEZ

- ANTIGA ORTOGRAFIA SOUSA HOMEM ANTIGO ADVOGADO

Periodicam­ente, a minha sobrinha Maria Luísa - a eleitora esquerdist­a da família - entende que deve insistir em que eu “devia escrever um romance”. A ideia não é nova, tal como eu próprio. O seu ponto de vista é generoso mas parte de um erro muito comum: o de pensar que um romance se escreve quando se tem uma vida para contar. Pode muito bem acontecer que, por vezes, entretido à hora da sobremesa (que já raramente tomo), ou respondend­o a alguma curiosidad­e do Dr. Paulo, que voltou a visitar-nos, eu me entusiasme e me perca em histórias sobre o meu passado. Mas ter um passado é uma coisa, ter ele alguma utilidade é outra. Ora, eu posso garantir aos meus benevolent­es leitores que não tenho qualquer utilidade. Além do mais, acontece que a pior coisa que pode ocorrera um romanc is taé ele terpr opensão para moralista, queéo que e usou. Os romances de Dona Agustina, por exemplo, correm na perfeição porque o seu temperamen­to é cruel, risonho, irónico, destemido e cheio de varandins de onde se podem observar como tudo entra em ruínas e se encaminha para o pecado. Já no meu caso, eu sentiria piedade das personagen­s e seria amável com os lugares – tudo o que não se deve fazer porque, como o leitor sabe, não há nada melhor num romance do que personagen­s maldosas, capazes de cometer crimes e indignidad­es; são eles (gente de mau carácter, pessoas com tendência para o crime) o sal da literatura, o tempero dos bons capítulos.

Mesmo admitindo que eu escreveria umromance, é necessário admitir que euiria de certeza perder-me entre episódios galantes e recordaçõe­s que revelariam uma vida desinteres­sante e vazia de emoções extraordin­árias. E, ao virar de um capítulo (se eu escrevesse o primeiro, sequer), estaria reduzido às lembranças vagas que me acompanham nestas crónicas. O romancista, suponho eu, tem de possuir a inteligênc­ia da malvadez, uma dose bastante invulneráv­el de misantropi­a, e – para culminar – umgrande desapego à verdade. Se os Homemse tornaram, comaidade, especialis­tas nessa amável e discreta misantropi­a, não lhes sobrou talento para se dedicarem às artes. Anossaci da deéo velho Por toque já não existe. Anossa-provínciaé o Alto Minho vetusto, garrido, explodindo no Verão emromarias onde raramente fomos encontrado­s, os escritos do poeta João Verde ou os sonetos de Manuel Bernardes. Anossa biblioteca é umamistura entre as teimosias do velho Doutor Homem, meu pai, e a luta (certamente inglória) contra a minha ignorância e a minha preguiça, nuncadebel­adas. Omeupassad­o, finalmente, é semelhante ao destino daqueles carvalhos frondosos queres is temàava lanche de pinhais que descematé ao mar de Moledo: estão lápara impedir que digam que desaparece­ram.

“Não há nada melhor num romance do que personagen­s maldosas

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