DEIXEM OS MIÚDOS FAZER 30 POR UMA LINHA
O recreio tem vindo a perder horas para as matérias letivas e isso pode prejudicar o futuro dos mais novos
No filme ‘O Pátio das Cantigas’, Vasco Santana é uma espécie de ‘controleiro’ de um bando de miúdos de
Lisboa que fazem trinta por uma linha para conseguirem um tostãozinho para o Santo António, e assim ganharem bolachas Maria e línguas de gato. Em ‘Aniki-bobó’, Manoel de Oliveira conta o equivalente, com crianças de um bairro popular do Porto. Isto era no tempo em que os mais jovens brincavam à rédea solta nas ruas das nossas cidades - nas aldeias nem vale a pena falar. Hoje, a jornalista Vanessa Fidalgo foi falar com médicos pediatras, psicoterapeutas e educadores que, escudados em estudos científicos internacionais, pedem por amor de Deus aos pais que não atafulhem os filhos com atividades da moda e que, simplesmente, os deixem ser crianças e fazer aquilo que é natural nessas idades... e lhes faz bem à saúde: brincar.
Já faz parte das recomendações científicas em Pediatria: prescrever brincadeira, coisa que as crianças ocidentais têm em doses cada vez menos generosas e, quando o fazem, é muitas vezes de forma controlada, limitada e direcionada pelos adultos. Agora que as férias grandes estão à porta, é tempo de refletir sobre a forma como brincam as nossas crianças e como isso pode influenciar o seu futuro, tanto ou mais do que as notas escolares. E, sobretudo, é tempo de passar da palavra à prática e deixá-las simplesmente brincar de verdade.
Quando, há uns meses, um relatório da Academia Americana de Pediatria (AAP, American Academy of Pediatrics) recomendou aos pediatras que receitassem mais tempo para brincar e avisou pais e escolas de que estão demasiado preocupados com a vertente académica em
detrimento do desenvolvimento emocional dos mais novos, a notícia correu o Mundo. Mas não surpreendeu assim tanto quem está habituado a lidar diariamente com a infância e com a escassez de tempo livre que afeta as famílias, problema que, à semelhança dos adultos do mundo o c ide ntal, afe ta igualme nte as crianças.
O referido relatório esclarecia os profissionais de saúde que brincar “não é uma coisa frívola”, comprovando a afirmação com estudos que demonstravam que é através da recreação livre que os mais novos desenvolvem um conjunto muito importante de aptidões: “Brincar potencia o desenvolvimento da linguagem, a capacidade para negociar com os outros e de lidar com o stress; melhora a estrutura e a função do cérebro no seu todo e promove funções executivas (ou seja, o próprio processo de aprendizagem), o que nos permite perseguir objetivos e ignorar distrações”, lê-se no documento científico.
Marta Calado, psicoterapeuta infantil, conhece de ginjeira o documento, mas a armadilha é fácil: “Os pais correm para o médico quando há um problema de desenvolvimento de um órgão interno, mas o desenvolvimento interno e o regulamento das emoções não se vê! E é disso que se fala quando não há tempo para brincar.”
Cada vez mais, admite, “nas consultas nota-se a falta de tempo para brincar livremente, desde a mais tenra infância até à faixa etária dos 12, 13 anos, quando os próprios adolescentes até já têm uma certa vergonha em assumir que gostam de brincar”.
Não só gostam como precisam. “Desde que o ambiente em que uma criança cresce seja minimamente estimulante, a criança vai ter uma curiosidade inata sobre o mundo em seu redor. Em tenra idade, nem sequer precisa de brincar com outras crianças: a interação com o adulto, sobretudo nos mais pequenos, através de jogos, do contacto com cores, texturas e diferentes circunstâncias também promove o devido desenvolvimento”, diz.
Mas depois, em fases posteriores do crescimento, o desenvolvimento emocional adquire-se em contacto com o mundo real: “Precisamente através das situações, experiências e atividades com que somos confrontados e muitas vezes em contacto com os outros.
Aprende-se a trabalhar em equipa, a ganhar e a perder, a gerir a frustração, a captar a atenção, a ganhar e a gerir a autoconfiança. Até porque não existem emoções negativas mas sim formas de a criança lidar com as suas emoções ”, afirma Marta Calado.
Problemas à vista
Quando isso não acontece, o resultado fica à vista no consultório da psicoterapeuta, quando as famílias lá chegam preocupadas, quase sempre na dura etapa da adolescência e já com problemas complexos para resolver.
“Chegam-nos adolescentes solitários, tímidos, com tendência para o isolamento, inseguros, com uma ati
tude individualista, às vezes mesmo deprimidos, pela dificuldade na integração e regulação dentro do grupo”, afirma. O isolamento físico advém frequentemente do défice de competências sociais: “Crianças que não brincaram têm falta de humildade, de capacidade de partilha, de aceitação da opinião dos outros, com personalidades narcisistas e, acima de tudo, muito ansiosas e dependentes dos resultados.”
Isto porque foram aprendendo lições erradas pelo caminho: “Interiorizaram que tirar boas notas e ser reconhecido é mais importante do que brincar. Mesmo inconscientemente, os pais esperam mais que os filhos se destaquem do que sejam felizes ”, concretiza Marta Calado. Em último caso, as situações mais graves acabam por conduzir a verdadeiros problemas de saúde física e mental: “Depressão, pensamentos suicidas, comportamentos de automutilação, adição aos jogos online e também obesidade.”
Recreio perdeu pontos
O referido relatório da Academia norte-americana de Pediatria aponta o dedo às recentes mudanças culturais, que têm “prejudicado as oportunidades de brincadeira das crianças”. Referindo-se à realidade norte-americana, mas que é comum a todo o mundo ocidental, os autores revelam que entre 1981 e 1997 o tempo de recreio das crianças diminuiu 25 por cento; crianças dos três aos 11 anos perderam 12 horas pors emana de tempo livre e 30 por cento dos jardins de infância nem sequer têm recreio.
Do estudo surgiu a recomendação para os pediatras tentarem inverter a situação e, sobretudo, a tendência de atafulhar as crianças em atividades projetadas e dirigidas pelos adultos.
E isto não diz apenas respeito à escola, mas sim a todas as atividades extra curriculares em que as famílias ‘afogam’ o tempo das suas crianças para colmatar a sua própria falta de tempo para lhes dedicar, problema obviamente atribuído “às pressões
“Crianças que não brincam são muito ansiosas MARTA CALADO PSICOTERAPEUTA