AS CIDADES VIRAM TELAS A CÉU ABERTO QUANDO UM
De norte a sul do País as fachadas dos prédios têm vindo a ganhar vida... e memória
ARTISTA INSPIRADO NELAS DEIXA A SUA MARCA. NOS ÚLTIMOS ANOS, LISBOA TORNOU-SE UMA DAS CAPITAIS MUNDIAIS DA ARTE URBANA, MAS O RESTO DO PAÍS NÃO LHE FICA ATRÁS E TEM FEITO POR HOMENAGEAR AS FIGURAS POPULARES DAS SUAS TERRAS E DAS SUAS GENTES NESTES MUSEUS IMPROVISADOS ONDE NÃO É PRECISO PAGAR BILHETE PARA ENTRAR. A ‘DOMINGO’ FOI À PROCURA DELES, DE NORTE A SUL DO PAÍS, PARA LHE MOSTRAR O RESULTADO
Se alguém quiser encontrar Cristiano ‘Má Raça’ para trocar dois dedos de prosa sobre o Barreiro antigo não há que enganar: o homem de 86 anos está sempre por perto do mural que o artista João Samina pintou através de uma fotografia do seu
rosto e que dá vida à fachada de um prédio devoluto no largo de Nossa Senhora do Rosário desde 2017. “Estão sempre a tirar-me fotografias, parece que até à Suíça já cheguei através do Facebook”, conta orgulhoso o antigo pescador que o projeto ‘Art in Town’ quis homenagear numa espécie de memória viva daquilo que foi, no passado, a comunidade piscatória da localidade. A arte urbana começou a servir-se das histórias das terras (e das suas gentes) para preencher paredes de norte a sul do País e criar verdadeiros museus a céu aberto, sem necessidade de pagar bilhete para entrar. Estão nas ruas, são de todos, assim os que passam queiram olhar para cima (ou para baixo, dependendo da obra) e apreciar os trabalhos que os diferentes artistas deixaram para a posteridade. Seja na turística Alfama, em Lisboa, onde uma Amália em calçada portuguesa parece criar uma onda do mar, seja junto à estação de comboios de Estarreja, cidade do distrito de Aveiro. Ali, um retrato da Dona Florinda, última mulher a cultivar arroz de forma tradicional no Esteiro de Salreu – da autoria de Vhils – parece dar as boas vindas aos que chegam.
Florinda Rola e Cristiano Santos são figuras populares das suas terras homenageadas em vida. Vicente Inácio Martins, o eterno ‘rapaz dos pássaros’ de Setúbal, ele que descalço calcorreava as ruas da cidade onde nasceu, também pôde assistir, em 2014, aos 91 anos, à inauguração de um mural de 20 metros de altura com base numa fotografia sua de menino. O ‘Rapaz dos Pássaros’ – nesse ano considerado um dos melhores grafítis do Mundo – é da autoria de Odeith, artista natural da Damaia que começou a pintar pré
Até à Suíça já cheguei, estão sempre a tirar-me fotos CRISTIANO ‘MÁRAÇA’ RETRATADO
dios na Falagueira, Amadora, em 2015, e a tatuar ali figuras de proa como Amália, Zeca Afonso, Fernando Pessoa ou Vasco Santana.
Mais a norte, em Vila Real, o artista Draw & Contra imortalizou o comandante Carvalho Araújo, herói da Primeira Guerra Mundial, e também o oleiro Cesário Martins, mestre na arte do barro negro de Bisalhães, provando que a arte urbana é democrática e arranja lugar para todos nas paredes, seja qual for o motivo que os trouxe à ribalta.
O industrial do Barreiro
No âmbito do mesmo projeto de arte urbana que levou Cristiano ‘Má Raça’ às paredes de um prédio devoluto no Barreiro, o artista Gonçalo Mar interpretou em 2018 uma fotografia de Alfredo da Silva (que abre este artigo) num mural multicolorido em que o conhecido industrial que ficou para a história é representado através de uma mistura de elementos de banda desenhada e de animação, com alguns elementos da cultura japonesa ou outros mais ligados aos códigos da arte urbana. Mais de um século antes de chegar àquela fachada na rua do Adamastor, Alfredo da Silva concebeu, com apenas 26 anos, um projeto audacioso e fundiu a CAF, que era a empresa que então administrava, com a Companhia União Fabril (CUF), que de fábrica de sabonetes, velas e adubos se transformou graças a ele num conglomerado que abrangeu os setores da indústria, comércio, transportes, agricultura, banca e seguros e está intimamente ligada à história do Barreiro. O lema da CUF, que chegou a ser o maior grupo económico da Península Ibérica , era “o que o País não tem, a CUF cria”. A arte urbana também.