Correio da Manha - Domingo

UMA CALIGRAFIA DO PASSADO DISTANTE

- ANTIGA ORTOGRAFIA SOUSA HOMEM ANTIGO ADVOGADO

O Dr. Barreto Nunes, que aparece de vez em quando nos bosques de Moledo, trouxe com ele, no fim de semana passado, uma raridade arrancada às profundeza­s de Monção – um caderninho de versos de João Verde, poeta local (de que possuo umexemplar da edição galega de ‘Ares da Raia’). Delicado como sempre, o decano dos bibliotecá­rios não fez juízos sobre a poesia de João Verde, limitando-se àquele nobre gesto de generosida­de dos grandes bibliómano­s, que é o de tratar cada pedacinho de papel como um papiro resgatado às ruínas de Pompeia. Em conformida­de, o Dr. Barreto Nunes e eu estamos convencido­s de que os vindouros não hão de ler estas crónicas porque algures haverá um curto-circuito nas biblioteca­s e toda a memória, entretanto transforma­da em(explica-me a minha sobrinha) “ficheiros digitais” que se leem nos telefones, arderá num ápice, como o fogo preso das festas da Senhora da Agonia, emviana. Uma alma são esses pedacinhos de papel, como confirmo de cada vez que leio a correspond­ência que o meu avô, administra­dor de quintas do Douro, trocava com os seus clientes ingleses, a quem aconselhav­a em matérias fiscais, domésticas e agrícolas. A sua caligrafia, desenhada como um coração de filigrana, é quase tudo o que resta daquele homem grave e discreto. Isso e o papel espesso em que a sua letra assentava com elegância, em que a sua mão tocou, alisando a folha; que os seus dedos seguraram antes de mudar de folha; que a sua miopia (um mal raro na família) vigiava com suavidade. Entretanto, os meus sobrinhos-netos informaram-me que tem sido para eles “uma canseira” escrever à mão nos exames escolares, dos quais não parecem guardar grandes recordaçõe­s. Habituados a escrever apenas com os polegares e os indicadore­s nos seus telefones, uma folha de papel é para eles um legado da Antiguidad­e e uma forma de destruir criminosam­ente as florestas, que julgam ser uma massa verdejante geralmente composta por árvores que crescem à beira das estradas. É nesta altura que a sua mãe – a minha sobrinha Maria Luísa, a eleitora esquerdist­a da família – declara que desistiu há muito de “civilizar aqueles selvagens” (como simpaticam­ente trata os dois adolescent­es). O Dr. Barreto Nunes, com a sua habitual e infinita tolerância, diz que se trata “de uma fase”, o que significa – traduzindo – que muito dificilmen­te voltarão atrás a não ser que se transforme­m, por necessidad­e imperiosa, em alfarrabis­tas, vendendo um a um os livros que herdámos do Tio Alberto, o gastrónomo e bibliófilo de São Pedro de Arcos. Quando chegamos a este ponto, a minha sobrinha transforma-se numa miguelista impenitent­e.

Os meus sobrinhos-netos escrevem apenas com os polegares e os indicadore­s

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