Correio da Manha - Domingo

CONSTÂNCIO, O IMEMORÁVEL INCONSTANT­E

- Vítorconst­âncio

Lembro-meco mos e fosse hoje, E na verdade, foi hoje. De manhã. Acordei, abria janela, inspirei o fresco arda serra e pensei com os meus botões: Constâncio, Constâncio, e se escrevesse­s as tuas memórias do tempo em que foste Governador do Banco de Portugal? Afinal, foi umaexperiê­ncia tão rica, tão cheia, tão empolgante, tão inspirador­a. E ainda por cima, com essa memória de elefante com que Deus te abençoou, vai ser canja. Tens que partilhar com o mundo, para memória futura. Para que as novas gerações compreenda­mos grandes mistérios do Portugal contemporâ­neo e democrátic­o. E para que os deputados parem de te chatear para ires às comissões de inquérito parlamenta­res. E assim foi. Se bem o pensei, melhor o fiz. De repente, todos os acontecime­ntos relevantes que eu protagoniz­ei começaram a surgir em catadupa perante a página em branco que aguardava, ansiosa, por mais e mais. Àdistância,é agora fácil percebera importânci­a de todos os detalhes, de todos os pormenores. Lembro-me perfeitame­nte, diria Proust das suas madalenas molhadas no chá, e digo eu das minhas memórias no Banco de Portugal. Lembro-me que as resmas de folhas A4 ficavam na terceira gaveta do segundo armário do corredor à esquerda ao lado da fotocopiad­ora Xerox. Ia-se pelo corredor com alcatifa bordeaux (oh, tanto que haveria para dizer sobre essa alcatifa bordeaux!), virava-se à direita, passava-se junto às alados trainees– onde estava, nessa altura, um jovem mas já promissor economista de seu nome Mário José Gomes de Freitas Centeno, que tirava então os melhores cafés do edifício-sede – e chegava-se finalmente ao meugabinet­e. Como poderia alguma vez esquecer aquele gabinete? Jamais! Para lá chegar, desde o parque de estacionam­ento, contava exatamente 759 passos. Nem um a mais, nem um a menos. 759. Julgo que devo a este meu rigor analítico e contabilís­tico, tanto como às minhas capacidade­s de supervisão, a minha ida posterior para o Banco Central Europeu.

Mas as minhas memórias não são feitas só de números. Nem pensar. Que não se pense que sou um empedernid­o tecnocrata que só vê números à frente. Lembro-me comnitidez de cada nome e de cada rosto que se cruzou comigo no BDP. Por exemplo, lembro-me coma mais vívida impressão que estava numa reunião com um senhor vestido de preto e com um sotaque engraçado (era um artista, julgo eu, mas tenho que verificar nas atas) quando entrano gabinete aminha secretária mariaaltin­a, a chorar porque o tio da sua mãe, o Ti Asdrúbal, caíra abaixo do burro e fraturara a bacia. Lembro-me bem porque nesse dia era uma terça-feira, e às terçasfeir­as a cantina do Banco de Portugal tinha sempre na ementa favas com chouriço e ovo escalfado.

Como me lembro, disso! Faz agora9 anos, 4 meses e dois dias. Lembrome porque os professore­s estavam a fazer uma manifestaç­ão porque o Sócrates lhes tinha congelado o tempo para efeitos de progressão na carreira. E também porque nesse dia tive umadiarrei­a terrível, não mental, intestinal mesmo, devem ter sido as favas que me caíram mal. Durante a tarde fui 5 (cinco) vezes à sanita. Recordo-me que o papel higiénico com desenhinho­s fofos de um cãozinho ficava bizarramen­te do lado esquerdo, quando toda a gente sabia que eu sou destro. Seja como for, estava aflitinho. Na noite anterior, jantara com Sócrates e Teixeira dos Santos, e também fiquei com dores de barriga. Percebi logo que vinha ali porcaria. Felizmente, tenho esta boa memória. Que ninguémpen­se que me apanhamemf­also sobre o meu passado como governador do BDP. Sei exatamente o que fiz e como fiz. E acima de tudo, que fiz tudo bem, dentro da mais estrita legalidade.

Agora, não me venham é com picuinhice­s. Autorizaçõ­es a José Berardo, problemas na Caixa, assalto ao BCP, questões de supervisão? Assim de repente, não estou a ver... Certamente é porque não era importante. E umhomemnão se pode lembrar de tudo.

Continua.

Um homem não se pode lembrar de tudo

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(Assinatura­ilegível)

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