CONSTÂNCIO, O IMEMORÁVEL INCONSTANTE
Lembro-meco mos e fosse hoje, E na verdade, foi hoje. De manhã. Acordei, abria janela, inspirei o fresco arda serra e pensei com os meus botões: Constâncio, Constâncio, e se escrevesses as tuas memórias do tempo em que foste Governador do Banco de Portugal? Afinal, foi umaexperiência tão rica, tão cheia, tão empolgante, tão inspiradora. E ainda por cima, com essa memória de elefante com que Deus te abençoou, vai ser canja. Tens que partilhar com o mundo, para memória futura. Para que as novas gerações compreendamos grandes mistérios do Portugal contemporâneo e democrático. E para que os deputados parem de te chatear para ires às comissões de inquérito parlamentares. E assim foi. Se bem o pensei, melhor o fiz. De repente, todos os acontecimentos relevantes que eu protagonizei começaram a surgir em catadupa perante a página em branco que aguardava, ansiosa, por mais e mais. Àdistância,é agora fácil percebera importância de todos os detalhes, de todos os pormenores. Lembro-me perfeitamente, diria Proust das suas madalenas molhadas no chá, e digo eu das minhas memórias no Banco de Portugal. Lembro-me que as resmas de folhas A4 ficavam na terceira gaveta do segundo armário do corredor à esquerda ao lado da fotocopiadora Xerox. Ia-se pelo corredor com alcatifa bordeaux (oh, tanto que haveria para dizer sobre essa alcatifa bordeaux!), virava-se à direita, passava-se junto às alados trainees– onde estava, nessa altura, um jovem mas já promissor economista de seu nome Mário José Gomes de Freitas Centeno, que tirava então os melhores cafés do edifício-sede – e chegava-se finalmente ao meugabinete. Como poderia alguma vez esquecer aquele gabinete? Jamais! Para lá chegar, desde o parque de estacionamento, contava exatamente 759 passos. Nem um a mais, nem um a menos. 759. Julgo que devo a este meu rigor analítico e contabilístico, tanto como às minhas capacidades de supervisão, a minha ida posterior para o Banco Central Europeu.
Mas as minhas memórias não são feitas só de números. Nem pensar. Que não se pense que sou um empedernido tecnocrata que só vê números à frente. Lembro-me comnitidez de cada nome e de cada rosto que se cruzou comigo no BDP. Por exemplo, lembro-me coma mais vívida impressão que estava numa reunião com um senhor vestido de preto e com um sotaque engraçado (era um artista, julgo eu, mas tenho que verificar nas atas) quando entrano gabinete aminha secretária mariaaltina, a chorar porque o tio da sua mãe, o Ti Asdrúbal, caíra abaixo do burro e fraturara a bacia. Lembro-me bem porque nesse dia era uma terça-feira, e às terçasfeiras a cantina do Banco de Portugal tinha sempre na ementa favas com chouriço e ovo escalfado.
Como me lembro, disso! Faz agora9 anos, 4 meses e dois dias. Lembrome porque os professores estavam a fazer uma manifestação porque o Sócrates lhes tinha congelado o tempo para efeitos de progressão na carreira. E também porque nesse dia tive umadiarreia terrível, não mental, intestinal mesmo, devem ter sido as favas que me caíram mal. Durante a tarde fui 5 (cinco) vezes à sanita. Recordo-me que o papel higiénico com desenhinhos fofos de um cãozinho ficava bizarramente do lado esquerdo, quando toda a gente sabia que eu sou destro. Seja como for, estava aflitinho. Na noite anterior, jantara com Sócrates e Teixeira dos Santos, e também fiquei com dores de barriga. Percebi logo que vinha ali porcaria. Felizmente, tenho esta boa memória. Que ninguémpense que me apanhamemfalso sobre o meu passado como governador do BDP. Sei exatamente o que fiz e como fiz. E acima de tudo, que fiz tudo bem, dentro da mais estrita legalidade.
Agora, não me venham é com picuinhices. Autorizações a José Berardo, problemas na Caixa, assalto ao BCP, questões de supervisão? Assim de repente, não estou a ver... Certamente é porque não era importante. E umhomemnão se pode lembrar de tudo.
Continua.
Um homem não se pode lembrar de tudo