REGRESSAR À PINTURA
Ficar mais tempo em casa a folhear quadros e coincidências. Pode ser um programa
Histórias de pintura agradam-me quase tanto como as coincidências que coleciono sobre escritores e os textos onde se distraem e deixam pistas para histórias estranhas. Um dos quadros de que mais gosto de ver – e que daria um filme ainda mais carregado de melancolia que o‘ Retrato de Rapariga com Brinco de Pérola ’(1655), de Verme e r–é o‘ Casal Arnolfini’ (1434), de Jan van Eyck; o retrato de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami no seu casamento em Bruges é extravagante por causa dos pormenores dignos de microscópio: os chinelos perto da cama, as peças de fruta num parapeito, e o minúsculo espelho arredondado onde se refletem as costas do casal e os outros presentes na cerimónia. Riqueza, opulência, um toque de humor, caprichos de retratista – de um pormenor passa-se a outro descobrindo em casa (folheando um álbum, ou vendo o quadro na Net) o que um dia vamos voltar a ver na National Gallery de Londres.
O meu preferido é ‘Las Meninas’ (1656), de Diego Velázquez: a cena captada nos aposentos reais de Filipe IV de Espanha tendo no centro a infanta Margarida rodeada de personagens da corte e, num extraordinário jogo de espelhos, sombras e esconderijos, o próprio pintor retratado em espelho com as figuras do rei e da rainha Mariana em fundo. Passo horas a estabelecer diálogos improváveis entre eles, folheando-os. E outras histórias. Por exemplo, a dos três quadros mais emblemáticos da Restauração da Independência de Portugal em 1640. Não é curioso que tanto ‘A Coroação de D. João IV’ como a representação da morte de Miguel de Vasconcelos sejam de pintores nascidos em Espanha, Veloso Salgado e António Fernández (ambos no século XIX)? Têm um ar cómico e de festa sevilhana (o segundo deles está cheio de tapetes e colchas nas varandas a meio da defenestração de Vasconcelos). O único tom de drama e solenidade é ‘A Prisão da Duquesa de Mântua’, do portuense Caetano da Costa Lima (1835-1898), onde Margarida de Saboia, a vice-rainha espanhola, tem um ar amedrontado e conformado. Tinha de ser português, evidentemente. Ma soque mais me surpreende, se virem bem,éoolh ar indiferente d os oldadod aguardada duquesa, como se nada daquilo lhe interessasse e tivesse acabado de beber uma má cerveja espanhola. Ah, nós e o 1º de Dezembro!
Digam lá que não é um belo programa.
“‘ Casalar nolfini ’( em baixoà direita) éextravag antepor causados pormenores dignos de microscópio”
Passo horas a estabelecer diálogos improváveis entre eles