Chaucer, o ‘pai’ da poesia inglesa,
que até foi tio por afinidade da nossa D. Filipa de Lencastre, ficou na história da literatura mundial graças ao livro ‘Os Contos de Cantuária’, um divertido clássico do erotismo
Narrativas marotas para passar o tempo e animar a peregrinação
Geoffrey Chaucer (c. 1340-1400), considerado o `pai' da poesia ou mesmo da literatu
ra inglesa, foi um caso notável de ascensão social na Idade Média, quando (quase) todos estavam destinados a viver e morrer no ‘lugar natural’ em que a natureza os fizera nascer. Chaucer apresentava-se como filho de um negociante de vinhos, mas desde que, aos 17 anos, se tornou pajem da condessa de Ulster, viveu sempre como nobre, ganhando até direito a usar brasão e timbre heráldico. Apesar da notável carreira de alto funcionário e diplomata ao serviço de Eduardo III e Ricardo II, foi como escritor que passou à história, graças ao livro ‘Os Contos de Cantuária’, um conjunto de histórias para divertir a corte combinando a sátira social com o atrevimento picante do erotismo mais desbocado. As marotices, contadas, segundo o autor, para passar o tempo durante a peregrinação ao túmulo de S. Tomás Beckett, em Cantuária, começaram a ser escritas em 1387 e ficaram incompletas quando Chaucer morreu, em 1400. Por essa altura já tinha caído em desgraça, depois de o seu protetor, Ricardo II, ter sido destronado por Henrique IV. Especula-se que a lealdade ao Rei deposto terá sido fatal para o escritor. Além de autor dos ‘Contos’, Chaucer traduziu do francês o clássico medieval ‘O Romance da Rosa’ e escreveu vários livros de poesia, com destaque para ‘The Duchess Book’ (‘O Livro da Duquesa’), por ocasião da morte de Blanche de Lencastre, mãe de D. Filipa, Rainha de Portugal.
Do livro `The Canterbury Tales' ( `Os Contos de Cantuária'), ed. Harvard University Press “Conto do Moleiro (…) A jovem mulher [do carpinteiro] era encantadora, com seu corpo gracioso e esbelto de doninha. Usava um cinto com debruns de seda e, preso em torno dos quadris, um avental branco como o leite da manhã, com muitos folhos.
Branca também era a camisa, com uma gola bordada, à frente e atrás, de seda preta como carvão, tanto por dentro como por fora. As fitas da touca branca combinavam com a gola, e a bandolete larga no cabelo, atada no alto, também era de seda. E, sem dúvida, o seu olho era malicioso; as duas sobrancelhas estavam depiladas, arqueadas e negras como o abrunho.
Era mais agradável à vista do que uma pereira nova, e mais suave do que a lã da ovelha. Pendia-lhe do cinto uma bolsa de couro, com borlas de seda e contas de latão. Em todo este mundo, de alto a baixo, bem se pode procurar um homem tão sábio que seja capaz de imaginar uma bonequinha tão adorável ou uma rapariga igual.
(...) um dia, aproveitando-se de o marido
dela estar fora, em Oseney, o belo Nicholas começou a rir e a brincar com a jovem esposa – os estudantes são muito espertos e sabidos. Nisto, furtivamente, agarrou-a pela cona, dizendo: “Deveras te digo que morro se não satisfizer o amor que secretamente sinto por ti, minha querida.” Em seguida, apertando-lhe com força a coxa, disse: “Minha querida, faz amor comigo imediatamente, senão – que Deus me ajude – eu morro!” Ela, porém, saltou como um potro na cerca, e, voltando rapidamente a cabeça, disse: “Por minha fé, eu é que não vou beijar-te! Ora, deixa-me estar sossegada. Deixa-me estar, Nicholas, ou começo a gritar ‘socorro, acudam’. E tira as mãos, se fazes favor!” Nicholas passou então a implorar-lhe piedade. Falou tão bem e fez tantas promessas que ela por fim lá acabou por conceder-lhe o seu amor, e jurou por S. Tomás de Kent que se lhe entregaria assim que visse oportunidade. “O meu marido é tão ciumento que, se não tiveres muita paciência e fores discreto, ele mata-me. É preciso toda a cautela neste caso.” “Não te rales”, disse Nicholas. “Por certo teria andado a perder tempo o estudante que não fosse capaz de enganar a um carpinteiro.”
E assim, como foi dito, eles combinaram e prometeram esperar pelo momento oportuno. Posto isto, Nicholas, depois de apalpar-lhe as coxas e de beijá-la com ternura, pegou no saltério e pôs-se a tocá-lo e a cantar alegremente.
(...) [o carpinteiro] deu uns gemidos ago
niados; depois, devido à má posição da cabeça, começou a ressonar. Nicholas desceu logo escada abaixo e Alison atrás dele, no maior silêncio. Sem dizer palavra, foram ambos para a cama onde o carpinteiro costumava deitar-se.
Houve diversão e festa rija, Alison e Nicholas ficaram deitados, entregues à alegria e ao prazer, até que o sino tocou as laudes [oração da manhã] e os frades, na capela, começaram a cantar. (...)”
Deixa-me estar ou começo a gritar ‘socorro, acudam’. E tira as mãos, se fazes favor!