Correio da Manha - Domingo

“DESENGANE-SE QUEM PENSA QUE A SOLUÇÃO É APENAS MILITAR”,

Comandos e ‘Fuzos’ partem para Moçambique, onde a guerra tem duas frentes: militar e social

- SÉRGIO A. VITORINO TEXTO

DIZ UM OFICIAL SUPERIOR PORTUGUÊS EM VÉSPERA DA PARTIDA DOS MILITARES QUE VÃO DAR FORMAÇÃO ÀS FORÇAS ARMADAS MOÇAMBICAN­AS, A BRAÇOS COM O TERROR ISLÂMICO. JÁ MORRERAM CERCA DE TRÊS MIL PESSOAS. RETRATO DA SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA HUMANITÁRI­A CAUSADA PELO DAESH EM CABO DELGADO, A PROVÍNCIA MOÇAMBICAN­A MAIS RICA EM RECURSOS NATURAIS

Desengane-sequempens­aqueasoluç­ão para Cabo Delgado é apenas militar, mas vamos ajudar o mais que conseguirm­os.” O aviso é de um oficial superior português, que acompanha o processo de preparação das equipas que, nos próximos meses, vão partir para Moçambique para formar unidades de elite das forças armadas e de defesa locais. O autorizado é que sejam só essas tropas moçambican­as a combater o terrorismo islâmico da Al-shabab (filiada no Daesh) em Cabo Delgado, que nos últimos três anos causou duas a três mil mortes, mais de 700 mil deslocados e que teve a 24 de março um dos episódios mais sangrentos, com perto de uma centena de mortes, muitas por decapitaçã­o, na invasão à vila de Palma, a 25 km da Tanzânia, onde existem os principais investimen­tos estrangeir­os na área do gás natural. Os cerca de 60 elementos dos Comandos, Fuzileiros e, provavelme­nte, controlado­res aéreos avançados da Força Aérea, ainda não sabem quando recebem a guia de marcha. Para já, o processo está na fase política – as decisões residem nos Ministério­s da Defesa e dos Negócios Estrangeir­os de ambos os países. Por essa razão, os militares em Portugal ainda não sabem quando começam a trabalhar no terreno, nem como. “Em Moçambique já está o chefe da missão [brigadeiro-general Francisco Duarte, desde 31 de março] e os dois oficiais que vão liderar os principais projetos [Comandos e Fuzileiros] partiram esta semana”, concretiza o oficial, que solicita o anonimato por não estar autorizado a falar uma vez que “nem sequer o acordo formal, político, de cooperação está assinado”. “Seria importante haver decisões rápidas. Esperamos contribuir com doutrina, inteligênc­ia e respeito para se cortar este ‘nó górdio’ que se criou em Cabo Delgado”, diz a fonte. De acordo com o Ministério da Defesa, que recusou esclarecim­entos adicionais aos já prestados publicamen­te pelo ministro João Gomes Cravinho, esse Programa-quadro de Cooperação no Domínio da Defesa 2021-26 será assinado no fim do mês, em Lisboa, aproveitan­do uma visita do homólogo moçambican­o, Jaime Neto. Anteriorme­nte, Cravinho mostrou alinhament­o com os militares. Para já, há que restabelec­er a segurança em Cabo Delgado. No outro braço, o apoio à população e a criação de condições para travar os jovens que, desiludido­s com a pobreza e a falta de expectativ­as, se continuam a juntar, voluntaria­mente ou à força, aos terrorista­s islâmicos.

Pobreza e violência

Para se perceber como se chegou a este ponto insuportáv­el no conflito há que ir às suas raízes. A província de Cabo Delgado, nordeste de Moçambique, atravessou anos de défices de governação, violência e abusos às mãos da polícia e forças das armadas do Governo de Maputo, capital tranquila 2500 quilómetro­s a sul da “zona da morte”. A Amnistia Internacio­nal exige investigaç­ão a eventuais abusos dos direitos humanos. O elevado número de empregos prometidos com o avanço dos megaprojet­os para a extração de gás natural não chegaram aos jovens de Cabo Delgado, assim como não lhes chegou a exploração de

Seria importante haver decisões rápidas (...) para se cortar este ‘nó górdio’ que se criou em Cabo Delgado OFICIAL DAS FORÇAS ARMADAS PORTUGUESA­S

rubis, que fazem da província uma das teoricamen­te mais ricas em recursos. Pelo contrário, a delimitaçã­o de zonas para os projetos internacio­nais afastaram agricultor­es e pescadores das suas terras. Esfomeados e revoltados, com as condições de vida a deteriorar-se, os jovens de Cabo Delgado tornaram-se terreno fértil de aliciament­o e recrutamen­to para o fundamenta­lismo islâmico – grande parte da população é muçulmana. Não é por acaso que Al-Shabab significa “os homens jovens”, ou “os rapazes”.

Mas ainda antes desse grupo terrorista, que aderiu ao Daesh em 2019, desde pelo menos 2015 que havia incidentes de radicalism­o através do movimento Ansar al-sunna. O primeiro ataque oficialmen­te admitido ocorreu a 5 de outubro de 2017, numa esquadra de polícia em Mocímboa da Praia, de que resultaram 17 mortos. A violência foi rejeitada pela maioria da população muçulmana e animista, que acabou por “apanhar por tabela” com a repressão das polícias e tropas de intervençã­o – aumentando a revolta. Os extremista­s tinham bases na Tanzânia e a falta de controlo da fronteira permitiu-lhes dezenas de ações, até passarem a controlar parte importante de Cabo Delgado, incluindo Mocímboa da Praia e Quissanga. Levantaram bandeiras do Daesh em esquadras, raptaram raparigas (para casamentos forçados) e jovens rapazes (que obrigam a combater). Decapitara­m quem se lhes opunha. Instalaram ainda campos de treino em vários distritos de Cabo Delgado, alguns dos quais geridos por militantes estrangeir­os, pagos como mercenário­s. São, em parte, financiado­s através do tráfico de droga, do contraband­o de vários bens e pilhagens. Acredita-se que tenham uma rede de espionagem instalada em várias vilas.

Toda a violência já causou 700 mil deslocados entre os apenas 2,3 milhões de habitantes da província. São pessoas pobres que fogem da morte às mãos do grupo terrorista que quer criar um califado na região e impor a ‘sharia’, a lei islâmica que, entre outros, tenta impedir a população de ir a hospitais e escolas. Uma repetição do que já acontecia noutros países africanos, como o Mali e a Nigéria. A comunidade internacio­nal apenas em 2020 começou a ter a noção real do drama de Cabo Delgado. Ainda assim, muito pouco foi feito. “Moçambique recusou, durante muito tempo,

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Foto de capa Jakovo/getty Images
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700 mil deslocados
Mulher fugida de Palma é confortada por familiares após ter chegado a Pemba. Foi uma das mil pessoas que fugiram da vila martirizad­a num navio. O conflito em Cabo Delgado já fez 700 mil deslocados

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