“DESENGANE-SE QUEM PENSA QUE A SOLUÇÃO É APENAS MILITAR”,
Comandos e ‘Fuzos’ partem para Moçambique, onde a guerra tem duas frentes: militar e social
DIZ UM OFICIAL SUPERIOR PORTUGUÊS EM VÉSPERA DA PARTIDA DOS MILITARES QUE VÃO DAR FORMAÇÃO ÀS FORÇAS ARMADAS MOÇAMBICANAS, A BRAÇOS COM O TERROR ISLÂMICO. JÁ MORRERAM CERCA DE TRÊS MIL PESSOAS. RETRATO DA SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA HUMANITÁRIA CAUSADA PELO DAESH EM CABO DELGADO, A PROVÍNCIA MOÇAMBICANA MAIS RICA EM RECURSOS NATURAIS
Desengane-sequempensaqueasolução para Cabo Delgado é apenas militar, mas vamos ajudar o mais que conseguirmos.” O aviso é de um oficial superior português, que acompanha o processo de preparação das equipas que, nos próximos meses, vão partir para Moçambique para formar unidades de elite das forças armadas e de defesa locais. O autorizado é que sejam só essas tropas moçambicanas a combater o terrorismo islâmico da Al-shabab (filiada no Daesh) em Cabo Delgado, que nos últimos três anos causou duas a três mil mortes, mais de 700 mil deslocados e que teve a 24 de março um dos episódios mais sangrentos, com perto de uma centena de mortes, muitas por decapitação, na invasão à vila de Palma, a 25 km da Tanzânia, onde existem os principais investimentos estrangeiros na área do gás natural. Os cerca de 60 elementos dos Comandos, Fuzileiros e, provavelmente, controladores aéreos avançados da Força Aérea, ainda não sabem quando recebem a guia de marcha. Para já, o processo está na fase política – as decisões residem nos Ministérios da Defesa e dos Negócios Estrangeiros de ambos os países. Por essa razão, os militares em Portugal ainda não sabem quando começam a trabalhar no terreno, nem como. “Em Moçambique já está o chefe da missão [brigadeiro-general Francisco Duarte, desde 31 de março] e os dois oficiais que vão liderar os principais projetos [Comandos e Fuzileiros] partiram esta semana”, concretiza o oficial, que solicita o anonimato por não estar autorizado a falar uma vez que “nem sequer o acordo formal, político, de cooperação está assinado”. “Seria importante haver decisões rápidas. Esperamos contribuir com doutrina, inteligência e respeito para se cortar este ‘nó górdio’ que se criou em Cabo Delgado”, diz a fonte. De acordo com o Ministério da Defesa, que recusou esclarecimentos adicionais aos já prestados publicamente pelo ministro João Gomes Cravinho, esse Programa-quadro de Cooperação no Domínio da Defesa 2021-26 será assinado no fim do mês, em Lisboa, aproveitando uma visita do homólogo moçambicano, Jaime Neto. Anteriormente, Cravinho mostrou alinhamento com os militares. Para já, há que restabelecer a segurança em Cabo Delgado. No outro braço, o apoio à população e a criação de condições para travar os jovens que, desiludidos com a pobreza e a falta de expectativas, se continuam a juntar, voluntariamente ou à força, aos terroristas islâmicos.
Pobreza e violência
Para se perceber como se chegou a este ponto insuportável no conflito há que ir às suas raízes. A província de Cabo Delgado, nordeste de Moçambique, atravessou anos de défices de governação, violência e abusos às mãos da polícia e forças das armadas do Governo de Maputo, capital tranquila 2500 quilómetros a sul da “zona da morte”. A Amnistia Internacional exige investigação a eventuais abusos dos direitos humanos. O elevado número de empregos prometidos com o avanço dos megaprojetos para a extração de gás natural não chegaram aos jovens de Cabo Delgado, assim como não lhes chegou a exploração de
Seria importante haver decisões rápidas (...) para se cortar este ‘nó górdio’ que se criou em Cabo Delgado OFICIAL DAS FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS
rubis, que fazem da província uma das teoricamente mais ricas em recursos. Pelo contrário, a delimitação de zonas para os projetos internacionais afastaram agricultores e pescadores das suas terras. Esfomeados e revoltados, com as condições de vida a deteriorar-se, os jovens de Cabo Delgado tornaram-se terreno fértil de aliciamento e recrutamento para o fundamentalismo islâmico – grande parte da população é muçulmana. Não é por acaso que Al-Shabab significa “os homens jovens”, ou “os rapazes”.
Mas ainda antes desse grupo terrorista, que aderiu ao Daesh em 2019, desde pelo menos 2015 que havia incidentes de radicalismo através do movimento Ansar al-sunna. O primeiro ataque oficialmente admitido ocorreu a 5 de outubro de 2017, numa esquadra de polícia em Mocímboa da Praia, de que resultaram 17 mortos. A violência foi rejeitada pela maioria da população muçulmana e animista, que acabou por “apanhar por tabela” com a repressão das polícias e tropas de intervenção – aumentando a revolta. Os extremistas tinham bases na Tanzânia e a falta de controlo da fronteira permitiu-lhes dezenas de ações, até passarem a controlar parte importante de Cabo Delgado, incluindo Mocímboa da Praia e Quissanga. Levantaram bandeiras do Daesh em esquadras, raptaram raparigas (para casamentos forçados) e jovens rapazes (que obrigam a combater). Decapitaram quem se lhes opunha. Instalaram ainda campos de treino em vários distritos de Cabo Delgado, alguns dos quais geridos por militantes estrangeiros, pagos como mercenários. São, em parte, financiados através do tráfico de droga, do contrabando de vários bens e pilhagens. Acredita-se que tenham uma rede de espionagem instalada em várias vilas.
Toda a violência já causou 700 mil deslocados entre os apenas 2,3 milhões de habitantes da província. São pessoas pobres que fogem da morte às mãos do grupo terrorista que quer criar um califado na região e impor a ‘sharia’, a lei islâmica que, entre outros, tenta impedir a população de ir a hospitais e escolas. Uma repetição do que já acontecia noutros países africanos, como o Mali e a Nigéria. A comunidade internacional apenas em 2020 começou a ter a noção real do drama de Cabo Delgado. Ainda assim, muito pouco foi feito. “Moçambique recusou, durante muito tempo,