Correio da Manha - Domingo

Nuno Gonçalo Poças escreveu ‘Presos Por um Fio

A condenação de ‘Presos Por um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril’

-

- Portugal e as FP-25 de Abril’, que sistematiz­a a história da organizaçã­o terrorista, das mortes nos anos 80 à amnistia na década seguinte

Para a história foram 17 as mortes dasaçõeste­rroristasd­asfp-25, incluindo três dos operaciona­is do grupo, Nuno Gonçalo Poças acrescenta mais uma, a morte, na sequência de ataque cardíaco, da avó do bebé que perdeu a vida quando dormia no berço, depois do rebentamen­to de uma bomba em S. Manços, Évora, numa “ação de retaliação” dos “trabalhado­res organizado­s nas FP-25” contra “os bens da família do latifundiá­rio Dionísio Luís Ciroula”, conforme os panfletos distribuíd­os na altura.

“Percebi que havia uma narrativa que era contrariad­a por algumas pessoas, nomeadamen­te pelo próprio Manuel Castelo-branco [filho do diretor-geral dos Serviços Prisionais assassinad­o] que foi escrevendo ao longo dos anos sobre o assunto, e quis saber o que se tinha passado”, conta o autor de ‘Presos Por um Fio - Portugal e as FP-25 de Abril’ que nasceu cinco meses antes de Gaspar Castelo-branco ter sido assassinad­o, já a Operação Orion tinha começado, em 1985, dois anos antes do homicídio do agente da PJ Álvaro Militão, a última vítima, já com Otelo condenado a 15 anos pelo crime de terrorismo, no megajulgam­ento que inaugurou o Tribunal Criminal de Monsanto, de que cumpriria dois.

“Até 1985 as pessoas estiveram atentas às FP-25, os atentados e os assaltos aconteciam quase todos os meses e era tempo de crise económico-financeira, mas a partir de 1986, com a entrada para a CEE e, sobretudo, depois, com a década de cresciment­o económico a partir de meados dos anos 90, tiveram necessidad­e de olhar para a frente e esquecer. Também houve uma intenção deliberada do poder político. Um dos relatórios da Comissão de Assuntos Constituci­onais do Parlamento diz precisamen­te isso, que era necessário ‘passar detergente sobre a última nódoa que tinha caído no pano da democracia’”, conta o autor do livro publicado pela Casa das Letras.

Para Nuno Gonçalo Poças, os dirigentes, nomeadamen­te Otelo Saraiva de Carvalho, “criaram uma narrativa daquilo que tinha acontecido” – que o Projeto Global nunca teve nenhuma relação com as FP e que, no limite, terá sido infiltrado por antigos membros das Brigadas Revolucion­árias de Isabel do Carmo e Carlos Antunes. “Não se tratou nada com objetivida­de e hoje nem sequer se sabe muito do que se passou. Gente em lugares de responsabi­lidade diz coisas inimagináv­eis: que o PCP esteve ligado às FP, que Camilo Mortágua esteve ligado às FP, que Isabel do Carmo esteve ligada às FP, que o MRPP esteve ligado às FP, e nada disto é verdade.”

O papel de Soares

A 1 de março de 1996, a Assembleia da República aprovou a amnistia promulgada cinco dias depois pelo então Presidente da República, Mário Soares. A Lei 9/96 amnistiava as “infrações de motivação política cometidas entre 27 de julho de 1976 e 21 de junho de 1991” – esmagadora­mente, os crimes das FP. A 9 de julho de 2003 prescreveu o processo dos chamados crimes de sangue, no qual quase todos os réus foram absolvidos e

Em 1996, a Assembleia da República promulgou a amnistia

Para manter o herói, Soares apagou tudo o resto NUNO GONÇALO POÇAS

dois arrependid­os condenados. “Mário Soares teve um papel importante, sobretudo na questão da amnistia. Consigo até certo ponto perceber as razões que o levaram a tomar aquela atitude, mas uma coisa é inegável: o papel simpático que teve em relação aos movimentos terrorista­s de extrema-esquerda e t a mbém d e e x t r e ma- d i r e i t a . Quando a amnistia foi aprovada incluiu também os crimes do MDLP. Miguel Carvalho, que escreveu sobre os movimentos de extrema-direita no PREC, explica isso: diz que Mário Soares sentiu que para combater o PCP valia quase tudo e, por isso, teve alguma ambiguidad­e com a rede bombista de extrema-direita. A dada altura, pessoas do PS chegaram a acreditar que o PCP estava envolvido nas FP - isso durou pouco tempo - e até Soares quis que as coisas seguissem o seu caminho até perceber que Otelo estava metido , e que era dirigente muito importante do Projeto Global (‘Óscar’). Soares fez uma coisa estranhíss­ima: para manter o herói apagou tudo o resto”, diz.

A lógica de acabar com o poder constituci­onal democrátic­o através da luta armada contra o capitalism­o, a burguesia, o imperialis­mo era transversa­l às organizaçõ­es terrorista­s europeias da época. Mas em Portugal os crimes não acontecera­m “contra o grande capital – em França, por exemplo, a Action Directe matou o CEO da Renault. Aqui houve antes o ataque a uma classe empresaria­l que nem sequer era de grandes capitalist­as: Rogério Cunha e Sá, administra­dor da Gelmar, morreu à porta de casa quando esperava o autocarro para ir para o escritório”. “Acho que o facto de os comandos das FP não serem pessoas com elevado grau de instrução, muitos deles desemprega­dos, revoltados com a situação económica, ajudava a canalizar a raiva para aquilo que considerav­am o patronato. Mas havia um alto quadro do Banco de Portugal, um capitão de

Abril, na altura já tenente-coronel, pessoas que se movimentav­am na elite do regime, onde podiam andar os grandes capitalist­as - e na altura nem isso havia, pois os Espírito Santo e o Champalima­ud não estavam cá. As FP foram ao que havia.” Entre os ameaçados estava Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar e depois, já em democracia, fundador do CDS, cuja carta, escrita com letras recortadas da imprensa, é publicada no livro.

A 16 de fevereiro de 1986, o grupo criado em 1980 cumpriu as ameaças e assassinou o homem que tinha restringid­o a liberdade de movimentos dos detidos do grupo na Penitenciá­ria de Lisboa e que não tinha vacilado perante as greves de fome e queixas de maus-tratos. O filho de Gaspar Castelo-branco passou a vida a recolher informação sobre o “grupo terrorista que não re

 ??  ??
 ??  ?? O Tribunal de Monsanto, em Lisboa, foi construído para acolher o mega julgamento. Da direita para a esquerda Pedro Goulart,
Otelo Saraiva de Carvalho, César Escumalha e Mouta Liz, quatro dos principais cabecilhas das FP-25
O Tribunal de Monsanto, em Lisboa, foi construído para acolher o mega julgamento. Da direita para a esquerda Pedro Goulart, Otelo Saraiva de Carvalho, César Escumalha e Mouta Liz, quatro dos principais cabecilhas das FP-25
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal