“Embelezar a História é um erro grave”
O antigo Presidente da República cita a ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal a propósito da luta contra a corrupção, fala da reforma das Forças Armadas, da polémica dos monumentos e apela à solidariedade para enfrentar a pandemia e a crise social
No início da pandemia comoveu Portugal ao afirmar que, como homem velho, estaria disposto – em caso de necessidade - a ceder o seu ventilador aos mais novos. Em 2008 prescindiu de mais de 1 milhão de euros de retroativos da reforma de general a que tinha direito. Dois momentos de um passado recente que definem Ramalho Eanes como uma das reservas morais da nação.
Crítico da reforma em curso no topo da hierarquia das Forças Armadas, o antigo Presidente da República cita a ex-procuradora-geral, Joana Marques Vidal, para sublinhar a falta de ambição do Governo na atual estratégia nacional de combate à corrupção. Defende, intransigentemente, mais apoios para as vítimas sociais da pandemia. Para que todos possam ter dignidade e esperança. Sobre a polémica dos monumentos associados aos Descobrimentos e ao colonialismo avisa, dos seus 86 anos: “Tentar embelezar a História é um erro grave.”
Como avalia a intenção do Governo de reforçar os poderes do chefe do Estado-maior-general das Forças Armadas (CEMGFA)?
As Forças Armadas terão sido a instituição do Estado que mais reformas sofreu depois de abril de 1974. É óbvio que isso não pode constituir impedimento à realização de outras reformas que uma alteração do conceito estratégico militar, das missões decorrentes e do sistema de forças adequadas exijam. Não discuto a conveniência de uma nova reforma: a da estrutura superior das Forças Armadas. Discuto, sim, por razões da minha responsabilidade social cidadã, a oportunidade e o método.
Porquê?
Por um lado, a oportunidade, porque, que eu saiba, não foi alterado o conceito estratégico militar e, em consequência, as missões das Forças Armadas e os sistemas de forças. Não é, pois, um circunstancialismo, interno ou internacional, que motiva a urgência dessa reforma. As Forças Armadas continuam a desempenhar as missões internacio
As Forças Armadas desempenham missões internacionais e internas, nomeadamente no combate à Covid-19, com discrição e eficácia
nais, com reconhecido empenho e mérito, e as missões internas (nomeadamente no combate à Covid-19), com discrição e eficácia. Por outro, discuto o método, porque uma reforma de tanto significado e efeito nas Forças Armadas exigiria um prudencial estudo multidisciplinar prévio, com consulta da sociedade civil, do GREI (Grupo de Reflexão Estratégica Independente, formado por generais dos três ramos das Forças Armadas na reserva) e das universidades. Ora este estudo não só não foi feito como se permitiu não tomar em consideração a oposição dos chefes de Estado-maior dos ramos (Armada, Exército e Força Aérea), que conhecem, melhor do que ninguém, cada um dos ramos que comandam e as exigências da sua liderança, de proximidade, que exige competência executiva, capacidade e prontidão de decisão, e exemplo de constante defesa de valores e interesses institucionais comuns. É, aliás, tudo isto que faz com que o chefe de Estado-maior se torne, para os ‘seus homens’, uma figura institucionalmente emblemática.
Pode detalhar as razões dos militares?
É, aliás, em minha opinião, a essa liderança que se deve a discrição expressiva da insatisfação, real e sentida, das Forças Armadas, o seu comportamento institucionalmente tão correto quanto ‘prudencial’, perante a ‘reforma 2020’, que previa efetivos entre 30 e 32 mil militares (o que existe são pouco mais de 20 mil); a saúde militar: passaram de ter hospitais dos ramos, com quadros próprios, para um Hospital das Forças Armadas sem capacidade necessária em dimensão de valências e acolhimento. Gostaria de esclarecer que entendo que a constituição de uma entidade de saúde militar única, na dependência do CEMGFA, se impunha há muito. O propósito era, pois, correto. Já a estratégia – ou melhor, a não estratégia – estabelecida para o conseguir foi desastrosa. A situação financeira do Instituto de Ação Social das Forças Armadas (IASFA), que não consegue honrar as suas responsabilidades, o que tem como resultado a sucessiva suspensão de protocolos e convenções existentes com o setor privado, a que os militares e suas famílias se veem forçados a recorrer por insuficiência dos sistemas de saúde militar. O facto de as patentes das Forças Armadas ganharem substancialmente menos do que as correspondentes da GNR e PSP, diferenças que se situam, em alguns casos, em mais de 30%. Sei que há uma proposta de correção destas disparidades de remuneração submetida a decisão superior desde 4 de março de 2020.
Considera a corrupção “uma epidemia que grassa na sociedade portuguesa”.
A corrupção é, infelizmente, um mal que grassa no mundo, e a que nenhum Estado é imune. Portugal, segundo informação da ONG Transparency International, divulgada em janeiro de 2020, está a meio da tabela da União Europeia. Portugal tem agora 62 pontos (em 100 possíveis) no índice de perceção da corrupção, tendo piorado face ao ano anterior.
A atual estratégia de combate à corrupção peca por defeito?
Recorrendo a Joana Marques Vidal, ao seu saber distintivo especial nesta matéria, sublinharia a preocupação que nos deve merecer a sua opinião de que haverá “pouca ambição no combate à corrupção, numa altura em que o Governo prepara
A corrupção, infelizmente, é um mal que grassa no mundo
Há umuma responsabilidade de todtodos em garantir aos nossonossos concidadãos o pão de cada dia, o abrigo familiar, a esperança
Todos os processos de descolonização são traumáticos
precisamente a sua estratégia nacional de luta contra a corrupção”. Estratégia nacional que, segundo a ex-procuradora-geral da República, deveria dedicar uma especial atenção a “matérias relativas à transparência no exercício dos cargos públicos, à fiscalização do financiamento dos partidos políticos, à contratação pública e uma especial atenção a setores já hoje classificados de risco, como, por exemplo, as autarquias locais”. Para além das matérias já referidas, eu acrescentaria os fluxos financeiros europeus, que vão ser recebidos para fazer face aos problemas sociais e económicos decorrentes da pandemia por Covid-19.
A democracia em Portugal está amordaçada?
Estabeleci como regra, para mim próprio, não comentar, nem direta nem indiretamente, qualquer ação desenvolvida ou quaisquer comentários produzidos pelos meus sucessores. Peço-lhe, pois, desculpa, embora creio que perceba, e não responderei a essa sua pergunta.
Como encara a polémica em torno do Padrão dos Descobrimentos e de outros monumentos?
Um povo é, segundo Unamuno [filósofo espanhol], uma unidade e continuidade, uma personalidade. A sua “memória”, a sua tradição, é a base da sua “personalidade coletiva”. Todo o que contribua para quebrar a unidade e continuidade espiritual desse povo tende a destruí-la e a destruir-se, como parte desse povo. Isto não impede, mas aconselha, até, a que revisitemos o nosso passado, sem nostalgia, não
É estulto reescrever a História. Importa sim olhá-la com respeito crítico e tudo fazer para que os males nela inscritos não se repitam
endemicamente. E revisitá-lo, sobretudo em épocas crísicas, em que tudo parece perigar, tornar-se incerto e desagregar-se. E devemos fazer assim porque uma memória democrática ativa sabe que as tradições do passado podem recordar-nos alguns dos perenes problemas da vida política e social e, por conseguinte, ajudar-nos a compreender quem somos, onde nos encontramos, o que podemos esperar e fazer.
É uma tentativa de reescrever a História?
Tentar embelezar a História é, pois, erro grave, porque nos inibe de a ler prudencialmente e, nela, colher ensinamentos que nos permitam fazer um presente mais justo e desenhar estrategicamente um futuro de mais operacional harmonia, um futuro de modernização económica e de igualdade diferenciada (na aceção ciceriana), que não deixe ninguém ficar para trás, perder a sua dignidade de ser h u ma n o e , s i mu l t a n e a me n t e , preocupar-se com uma cidadania ativa. Estulto é, pois, por quanto disse, reescrever a História. Importa, sim, olhando-a, com respeito crítico, tudo fazer para que males, nela inscritos, se não repitam, não perdurem, quer na nossa sociedade, quer na mundial. Todos os processos de descolonização são traumáticos e as feridas são inevitáveis. O nosso não é exceção. Cabe-nos a nós – a todos nós – continuar, hoje, a trilhar os caminhos da reconciliação que contribuam para sarar essas feridas, e não para as avivar. Nos casos, tão debatidos, do colonialismo e da escravatura, correto será empenharmo-nos no combate, responsável e organizado, contra um e outra. Primeiro, internamente; depois internacionalmente, exigindo, mesmo, que a nossa diplomacia combata, nas instâncias internacionais, em especial a neo-escravatura (tráfico de mulheres e crianças, particularmente) e defenda trabalhadores migrantes, presos por delito de opinião, povos sujeitos ao domínio, especialmente daquilo a que se chamam guerras inúteis (que não defendem valor nenhum), e tudo façam para que os libertem e partilhem todos os valores, nomeadamente a dignidade geneticamente inatingível do ser humano. É pungente saber que, em 2017, havia, no mundo, mais de 21 milhões de escravos, segundo a Organização Internacional do Trabalho! E urgente será interrogarmo-nos, cada um de nós, se já se alistou no combate a esta indecência mundial.
São precisos mais apoios para enfrentar a pandemia social?
As ONG, sobretudo as empenhadas no combate à pobreza, a pobreza gritante, potenciada pela pandemia, e, entre elas, a Caritas e o Banco Alimentar, tornam não só evidente mas urgente, também, a necessidade de maior e mais ágil suporte social. A gravidade da situação atual e potencial, da situação de crescente pobreza, que se vai estendendo mesmo a certas franjas da própria classe média exigiria uma estratégia, no contexto global, de resposta, que englobasse Governo, Assembleia da República, câmaras municipais e ONG com vocação e experiência em questões de apoio social. Exigiria, mesmo, uma resposta da sociedade civil não organizada, dos cidadãos com disponibilidade financeira suficiente.
De que forma?
Seria razoável que estes últimos consignassem uma pequena parte dos seus rendimentos – a parte que cada um entendesse razoável face aos seus rendimentos e às suas despesas – para financiar o combate à crise social crescente. Sem recorrer a ‘louvamentos patrióticos’ e, ainda menos, nacionalistas, creio que importará relembrar que todos somos filhos do mesmo chão, herdeiros de uma mesma tradição e cultura, fruidores de uma mesma língua e de um mesmo presente nacional. Situação, esta, que acarreta uma responsabilidade de todos para com todos. É essa ingénita condição que nos obriga, de maneira moral, política e eticamente, a defender, com empenho pessoal, a dignidade essencial de todos os nossos concidadãos, o que passa, inevitavelmente, por garantir, a todos, o pão de cada dia, o abrigo familiar, a esperança.