OS TRATAMENTOS PARA COMBATER O CORONAVÍRUS
Várias hipóteses têm sido testadas – e muitas abandonadas. A investigação está ao rubro
Quando surge um vírus novo, aquilo que é feito numa primeira fase é tentar adaptar os medicamentos já existentes no mercado - mas no caso do novo coronavírus esta não foi, pelo menos até aqui, uma estratégia bem-sucedida. “Primeiro fez-se o mais óbvio, que foi tentar medicamentos de outros vírus, como os usados no VIH e na gripe, por exemplo, e tentar usá-los ou adaptá-los para o SARS-COV-2, mas sem grande sucesso. Depois vieram alguns estudos que pegaram em moléculas completamente fora da ação antiviral, porque chegou a circular informação de que podiam, ainda assim, ter atividade antiviral, mas nenhuma delas se impôs como uma realidade consensual”, contextualiza Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Entre estes contam-se a cloroquina e a hidroxicloroquina – utilizadas há muitos anos para o tratamento de malária e doenças autoimunes, como o lúpus - e que desde sempre foram defendidos pelo Presidente do Brasil, de tal forma que Bolsonaro levou os laboratórios do Exército brasileiro a fabricarem milhões de unidades num curto espaço de tempo. Mas se no início da pandemia estes dois medicamentos tinham apresentado resultados promissores, com a continuação da investigação as conclusões começaram a ser outras, nomeadamente as que relatavam um acréscimo de efeitos adversos potencialmente graves, incluindo “um aumento da mortalidade”, durante a hospitalização de doentes com Covid-19. Um estudo recente realizado pela Universidade Federal do Paraná e publicado na revista científica ‘Toxicology and Applied Pharmacology’ revela que a cloroquina provoca danos em vasos sanguíneos e pode agravar a Covid-19 e por cá o Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde e a Direção-geral da Saúde (DGS) decidiram recomendar a suspensão do tratamento com hidroxicloroquina em doentes com Covid-19.
Depois foi a vez da ivermectina - há 30 anos utilizado para acabar com os piolhos e a sarna – começar a ser prescrita por vários médicos portugueses (calcula-se que centenas de doentes tenham tomado este medicamento), embora a comunidade científica o tenha posto de parte desde o início da pandemia: neste momento, a terapêutica não está aprovada nem é recomendada contra a nova infeção por nenhuma autoridade de saúde. “A verdade é que nenhum desses três, nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina nem a ivermectina se impôs como uma realidade consensual”, continua o investigador Miguel Castanho.
Por outro lado, acredita Paulo Paixão, virologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia, o remdesivir - desenvolvido inicialmente para o tratamento do ébola e do vírus de Marburg (febre hemorrágica), embora sem grandes resultados - foi o que se destacou mais entre todos os testados, por isso foi aprovado pela FDA, a Agência Americana do Medicamento. “No entanto, mesmo este tem sido algo
Testaram-se medicamentos contra outros vírus
M. CASTANHO, INVESTIGADOR
discutido. Embora se assuma que possa ter alguma utilidade, os resultados não são espetaculares. Já a dexametasona – um tipo de corticoide que tem uma potente ação anti-inflamatória e por isso é muito utilizado para tratar diferentes tipos de alergias ou problemas inflamatórios do corpo, como artrite reumatoide, asma grave ou urticária - também tem sido utilizada, mas não é um antiviral, é para utilizar nos casos graves para moderar a resposta inflamatória exagerada”, conclui.
Neste momento, ao investigador Miguel Castanho, as terapias que lhe parecem mais avançadas, “e algumas delas até já aprovadas nos Estados Unidos, são as terapias de anticorpos, que foram muito faladas quando DonaldTrumpes teve doente e houve aquele internamento. No caso dele terão usado um ‘cocktail’ de anticorpos que ainda estava em experimentação, mas creio que antes de ele terminar o mandato houve uma autorização para a utilização desses anticorpos, pelo menos em algumas situações”. Até porque estas terapias de que fala não são de uso generalizado, como as vacinas, são apenas para utilizar em pessoas que apresentam uma determinada descrição da doença. Apesar das vantagens até agora demonstradas na utilização de anticorpos, o investigador aponta dois problemas: “Por um lado, são terapias caras; por outro, existe a questão das variantes – porque os anticorpos são específicos para deter
Terapias de anticorpos são as mais avançadas
M. CASTANHO, INVESTIGADOR
minada variante e, havendo novas variantes, a especificidade dos anticorpos deixa de ser tão grande.”
A ciência em direto
Neste momento, uma equipa do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra está a analisar 2000 medicamentos, todos eles aprovados pela Agência Americana do Medicamento, para perceber se algum deles consegue inibir a interação do vírus que tem características análogas ao novo coronavírus com o seu recetor. Isto porque estes investigadores, que trabalham há muitos anos com vetores virais - vírus que foram modificados para terem características benignas e transportarem genes para terapia ou investigação - não estão por isso a trabalhar com o SARS-COV-2, mas com uma réplica. E de que forma o estão usar? “Pegamos nesses vírus e colocamo-los sobre placas onde temos células e, ao mesmo tempo, em cada um dos poços onde temos células vamos colocar um desses dois mil fármacos. Este vírus codifica uma proteína que permite emitir luz, ou seja, pegamos na placa que incubámos com os fármacos todos e que infetámos em cada poço com este vírus e vamos ver quais foram os fármacos que conseguiram inibir a infeção”, explica o investigador Luís Pereira de Almeida. Torna-se possível de aferir porque os cientistas colocaram sobre as células um reagente que faz com que essas células emitam luz: quanto mais luz emitirem, significa que mais infeção houve, quanto menos luz menos infeção. Isto é, os fármacos que conseguirem inibir a produção de luz são os que conseguiram inibir a infeção.
“Já temos uma série de candidatos, agora tem de se testar se não houve nenhum artefacto. Ou seja, vamos utilizar um vírus semelhante, mas que não tem a proteína da espícula do SARS-COV-2 à superfície e vemos se o efeito desaparece. O efeito deve desaparecer se de facto for algo específico à interação da proteína da espicula com o recetor”, continua Pereira de Almeida. Os fármacos que passarem neste teste vão ser depois testados com o ‘verdadeiro’ vírus da Covid-19 e só a seguir a esse passo se seguirão os ensaios clínicos. A evolução da ciência não é linear e só agora, que assistimos à investigação quase em direto fruto da pandemia que assolou o mundo há um ano, é que começamos a aperceber-nos disso. Os avanços e recuos que antes não saíam dos laboratórios estão agora à vista de todos, numa espécie de ‘Big Brother’ da ciência. “Há vírus que dão muita luta, o próprio vírus da gripe deu luta, já levamos é mais de 100 anos de luta contra ele. Contra o novo coronavírus levamos só um, por isso é natural estarmos 100 vezes mais avançados no da gripe. Mas se nos lembrarmos do historial do vírus da sida, vemos que também foi uma luta muito difícil, a sida nos primeiros tempos matou indiscriminadamente e nos primeiros tempos era o comportamento das pessoas que podia travar a doença, no caso o uso do preservativo. Na sida nem se conseguiu vacina, mas a determinada altura surgiu um medicamento, depois surgiram outros, começaram a usar-se ‘cocktails’ de medicamentos e chegámos ao ponto em que estamos hoje: a doença não é curável, mas consegue-se sucessivamente ir usando medicamentos diferentes e ir garantindo a sobrevivência das pessoas”, exemplifica Miguel Castanho.
“Não queremos repetir o erro do sarampo, que é exemplar. Matou no início do século XX em grande quantidade, mas conseguiu-se uma vacina extremamente eficaz, ao ponto de esquecermos o sarampo e a necessidade de se pensar em medicamentos para o sarampo. A lógica foi: a vacina é tão boa que não compensa investir em tratamentos. Mas arrependemo-nos amargamente disso quando, com os movimentos antivacinas, passaram a morrer outra vez pessoas de sarampo, porque uma vez contraído o sarampo não havia medicamentos para o tratar. É por isso importante termos vacinas, mas também desenvolvermos medicamentos que possam tratar a doença.”
Equipa de cientistas da Universidade de Coimbra está a testar dois mil medicamentos e a sua reação a um vírus que é réplica do SARS-COV-2