ABRIL, O MAIS CRUEL
Recordo com alguma melancolia as velhas estradas do Minho: estreitas, curvilíneas, de empedrado, com rectas excepcionais, passando por florestas de pinheiros e servindo de observatório do litoral. Mas, em chegando Abril, que é o mês mais cruel, as mimosas despontavam como uma ameaça de frivolidade nessa paisagem serena, boa para velhos que festejam os primeiros raios de sol que anunciam a perpetuação da espécie. Colorindo as colinas daqui até ao Gerês, atravessando as serras e dançando ao sabor do vento na velha estrada para Viana, as mimosas interrompiam aquela ditadura dos pinhais e dos densos arvoredos que tinham sobrevivido ao Inverno.
Tudo isto acontecia antes da democracia, da indústria automóvel (que exigiu a indústria das auto-estradas) e “da pandemia”. Não havia vacina contra a beleza do Alto Minho, coroado com nuvens de vertigem, dias bonançosos e freguesias tranquilas onde o rio Minho vertia para as suas margens de Melgaço ou Monção, separando-nos amigavelmente de Espanha – e produzindo sonetos desnecessários, é certo. Mal Abril anunciava as despedidas, a meio do mês, o velho Doutor Homem, meu pai, programava viagens pelos caminhos perdidos nas serras, por onde chegávamos aos Arcos de Valdevez e ao Lindoso, ou por onde subíamos e descíamos até conseguir chegar ao velho pontão carcomido pela água da lagoa de S. Pedro de Arcos. Era aí que ficava, bem perto, o refúgio onde se albergara o Tio Alberto, bibliófilo emérito, gastrónomo, jurista, aventureiro e autodidacta. A família seguia até lá no velho Plymouth azul-escuro que lembrava ao patriarca os verdejantes arredores de Oxford, mas o campeão das estradas do Minho dessa época foi, evidentemente, o Tio Alberto, que mantinha o seu Alfa Romeo – um “vero Osso di Seppia”, como então dizia a bela sociedade de Milão – como um atrevimento e um desafio ontológico à nossa modéstia congénita. Guiei-o várias vezes e senti-me, na época, um actor de cinema ao lado de uma jovem com quem outrora passeei nos anos 50. Mas isso é outra história que não tem a ver com o bulício das nossas estradas.
À medida que contava estas recordações ao almoço de domingo passado, a minha sobrinha, nem de propósito, ficou comovida com a revelação de uma paixão antiga. Ela gosta de histórias impossíveis. Nesta idade, um velho pode contar o que aconteceu há 40 ou 50 anos sem correr o risco de encontrar as personagens das ‘Novelas do Minho’, onde Camilo contou amores impossíveis. Ela pensa que estas confissões escondem certa melancolia, cartas escondidas numa gaveta, fotografias já velhas ou até um segredo de família. Quanto a melancolia, não nego. Mas tudo o resto, se ainda existe, deve-se ao mês de Abril.
Não havia vacina contra a beleza do Alto Minho coroado de nuvens