“IAM DE ARMA AO OMBRO E NÃO SABIAM ANDAR NO MATO”
Os soldados eram carne para canhão. A falta de formação, aliada à fraca qualidade das chefias de setor, era um ‘cancro’
Fui mobilizado para Moçambique para integrar os efetivos da Companhia de Artilharia 7221 (CART 7221) que já estava no terreno havia um mês. Segui viagem no dia 9 de setembro de 1973. Ao desembarcar no aeroporto da Beira, dirigi-me ao bar para me refrescar. Aí, o ‘barman’ perguntou se era a primeira vez que estava em Moçambique, ao que respondi: ‘Afirmativo.’ A seguir disparou um ‘não tens que fazer na tua terra?’ e acrescentou que não precisavam de mim para nada. Isto é que foi uma receção. Da Beira segui para Tete. Ao sair do avião julguei estar a entrar num forno, tal era a temperatura. Com alguma facilidade atingiam-se 45/46 graus.
Segui então para o destino final, o local onde estava a minha companhia. Chamava-se Chizampeta e distava cerca de 10 quilómetros da fronteira com o Malawi. Desilusão. À chegada, só vi um número ínfimo de barracas que era o quartel. Fui bem recebido, apesar de ainda sangrarem algumas feridas pela morte de dois camaradas em dois meses. Na madrugada seguinte fui, como voluntário, para o mato, numa operação de seis dias com reabastecimento por helicóptero ao quarto dia. A nossa zona era de infiltração inimiga devido à proximidade com o Malawi e com a Zâmbia. Era uma zona muito difícil, sendo necessário abrir caminho à catanada para avançar mato adentro. Confesso que senti algum medo, tal era a bandalheira que grassava naquele grupo.
Sem formação
Eu era furriel miliciano de operações especiais (ranger) e tinha formação em várias valências, como atirador, em minas e armadilhas, comunicações e enfermagem. Mas a maior parte dos soldados não sabia comportar-se no mato, iam aos pares, com a arma no ombro, em vez de seguirem em fila indiana e de arma pronta a disparar. Eram carne para canhão. Iam de olhos completamente fechados. E quando se ouviam tiros, toda a gente disparava, mas ninguém sabia para onde. A falta de formação, aliada à fraquíssima qualidade das chefias (ao nível de setor e não de companhia), era o maior ‘cancro’. Em Chizampeta, onde permanecemos durante 13 meses, as carências eram enormes. Instalações degradadas e alimentação fraquíssima. Não raras vezes dei com alguns soldados a chorar. Correio era uma vez por semana e escusado será dizer que havia homens que quase não recebiam correspondência.
Tivemos um militar que desertou porque alguém o acusou de ter roubado uma importância em dinheiro a um colega. Meteu-se mata adentro sem arma e sem nada para comer. Sempre pensei que não tivesse sobrevivido na mata, mas, mais tarde, vim a saber que tinha s i d o c a p t u r a d o p e l a F r e l i mo (Frente de Libertação de Moçambique) e que se encontrava bem. Ainda bem Damião, porque quem te acusou foi o próprio ladrão. O quotidiano era uma autêntica loucura. A toda a hora se perscrutava para além da copa das árvores, à procura de algum sinal de que algo iria acontecer. Quase todos os fins de dia nos questionávamos: ‘Quem será o próximo a tombar?’ Infelizmente, tombaram alguns. A seguir fui para Furancungo, onde estive um mês. Depois segui para Nampula, onde permaneci mais quatro meses. Embarquei a 31 de janeiro de 1975, regressei e constituí família.
“Toda a gente disparava, mas ninguém sabia para onde