Correio da Manha - Domingo

“IAM DE ARMA AO OMBRO E NÃO SABIAM ANDAR NO MATO”

Os soldados eram carne para canhão. A falta de formação, aliada à fraca qualidade das chefias de setor, era um ‘cancro’

- MANUELA GUERREIRO RECOLHA DO DEPOIMENTO

Fui mobilizado para Moçambique para integrar os efetivos da Companhia de Artilharia 7221 (CART 7221) que já estava no terreno havia um mês. Segui viagem no dia 9 de setembro de 1973. Ao desembarca­r no aeroporto da Beira, dirigi-me ao bar para me refrescar. Aí, o ‘barman’ perguntou se era a primeira vez que estava em Moçambique, ao que respondi: ‘Afirmativo.’ A seguir disparou um ‘não tens que fazer na tua terra?’ e acrescento­u que não precisavam de mim para nada. Isto é que foi uma receção. Da Beira segui para Tete. Ao sair do avião julguei estar a entrar num forno, tal era a temperatur­a. Com alguma facilidade atingiam-se 45/46 graus.

Segui então para o destino final, o local onde estava a minha companhia. Chamava-se Chizampeta e distava cerca de 10 quilómetro­s da fronteira com o Malawi. Desilusão. À chegada, só vi um número ínfimo de barracas que era o quartel. Fui bem recebido, apesar de ainda sangrarem algumas feridas pela morte de dois camaradas em dois meses. Na madrugada seguinte fui, como voluntário, para o mato, numa operação de seis dias com reabasteci­mento por helicópter­o ao quarto dia. A nossa zona era de infiltraçã­o inimiga devido à proximidad­e com o Malawi e com a Zâmbia. Era uma zona muito difícil, sendo necessário abrir caminho à catanada para avançar mato adentro. Confesso que senti algum medo, tal era a bandalheir­a que grassava naquele grupo.

Sem formação

Eu era furriel miliciano de operações especiais (ranger) e tinha formação em várias valências, como atirador, em minas e armadilhas, comunicaçõ­es e enfermagem. Mas a maior parte dos soldados não sabia comportar-se no mato, iam aos pares, com a arma no ombro, em vez de seguirem em fila indiana e de arma pronta a disparar. Eram carne para canhão. Iam de olhos completame­nte fechados. E quando se ouviam tiros, toda a gente disparava, mas ninguém sabia para onde. A falta de formação, aliada à fraquíssim­a qualidade das chefias (ao nível de setor e não de companhia), era o maior ‘cancro’. Em Chizampeta, onde permanecem­os durante 13 meses, as carências eram enormes. Instalaçõe­s degradadas e alimentaçã­o fraquíssim­a. Não raras vezes dei com alguns soldados a chorar. Correio era uma vez por semana e escusado será dizer que havia homens que quase não recebiam correspond­ência.

Tivemos um militar que desertou porque alguém o acusou de ter roubado uma importânci­a em dinheiro a um colega. Meteu-se mata adentro sem arma e sem nada para comer. Sempre pensei que não tivesse sobrevivid­o na mata, mas, mais tarde, vim a saber que tinha s i d o c a p t u r a d o p e l a F r e l i mo (Frente de Libertação de Moçambique) e que se encontrava bem. Ainda bem Damião, porque quem te acusou foi o próprio ladrão. O quotidiano era uma autêntica loucura. A toda a hora se perscrutav­a para além da copa das árvores, à procura de algum sinal de que algo iria acontecer. Quase todos os fins de dia nos questionáv­amos: ‘Quem será o próximo a tombar?’ Infelizmen­te, tombaram alguns. A seguir fui para Furancungo, onde estive um mês. Depois segui para Nampula, onde permaneci mais quatro meses. Embarquei a 31 de janeiro de 1975, regressei e constituí família.

“Toda a gente disparava, mas ninguém sabia para onde

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 ??  ?? 1 Com moradoras locais. O apoio às populações era uma das funções dos militares 2 Sorri dente no amplo espaço africano 3 Um cigarro no mato, sem largar a proteção da G3
4 Momento de pausa à entrada de um aldeamento 5 Atento a tudo à volta
1 Com moradoras locais. O apoio às populações era uma das funções dos militares 2 Sorri dente no amplo espaço africano 3 Um cigarro no mato, sem largar a proteção da G3 4 Momento de pausa à entrada de um aldeamento 5 Atento a tudo à volta

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