Correio da Manha - Domingo

UMA MERENDA DE PRIMAVERA

- ANTIGA ORTOGRAFIA SOUSA HOMEM ANTIGO ADVOGADO

De entre as imagens familiares que decoram a minha representa­ção do passado, há várias que vêm ter comigo durante o mês de abril: por exemplo, Dona Ester, minha mãe, aguardando à beira do pequeno molhe da Foz que os seus filhos completem o passeio de bicicleta, ou que se cansem da ventania crepuscula­r no areal de Afife; o velho Doutor Homem, meu pai, oferecendo moedas de 5 tostões aos seus netos e sobrinhos-netos para que arrancasse­m, às escondidas, os gladíolos do jardim de Ponte de Lima, uma das plantas a que a Tia Benedita dedicava alguma devoção (dona ester, minha mãe, acreditava que o gesto tinha mais a ver com a vontade em se ver livre da gritaria do que com a sua aversão às plantas); o modo como, em pleno Verão, a varanda do casarão de Ponte de Lima adormecia também à hora da sesta, quando o velho Doutor Homem refugiado lá dentro, na sala dos livros (nem lhe chamava escritório nem biblioteca), ouvia os discos da sua soprano preferida, Anna Moffo; as caminhadas em direcção à praia e ao areal de Moledo, certamente com a finalidade de não desperdiça­r a derradeira onda de nevoeiro matinal; as viagens pelas estradas do Minho em busca do lugar perfeito para um piquenique – que nunca existia, e de que raramente falo nestas crónicas.

Porém, desde que mencionei o assunto, a minha sobrinha Maria Luísa, eleitora esquerdist­a da família, insiste que “temos de repetir o piquenique”, como se tivéssemos feito um no ano passado, ou antes da “pandemia”, ou há cinco ou seis anos – quando, na verdade, os piquenique­s na história desta família são uma recordação tão antiga que não é deste tempo, nem provavelme­nte do meu.

O meu avô, administra­dor de quintas do Douro, era o principal entusiasta dos piquenique­s, a que ele chamava, muito apropriada­mente, merendas. E lá merendávam­os, de vez em quando – o meu avô vestido de fato e gravata, sentado numa cadeira, de panamá de palhinha (uma preciosida­de vianense), equilibran­do um pratinho sobre os joelhos; Dona Ester, minha mãe, como um aprincesa húngaraà beirado danúbio (que, ali, era um ribeiro minhoto rodeado de carvalhos e faias), servida de limonada pelo velho Doutor Homem, meu pai, que nunca se comoveu com a Natureza, mas percebia que ela tinha um efeito positivo no apetite (embora fornecendo oxigénio e insectos a mais); a Tia Henriqueta, representa­ndo de Tia Henriqueta, sempre sorridente, como se apreciasse a passagem de uma filarmónic­a de aldeia numa tarde de domingo. Aliás, só faltava mesmo um concerto campestre a ilustrar aquela merenda de gente que se dava mal com a descontrac­ção (a começar por mim), mas prezava tanto o passado que se portava às mil maravilhas para que pudesse ser recordada 70 anos depois por este velho tão comovido e tão fora de moda.

As viagens pelas estradas do Minho em busca de um lugar para um piquenique

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