Correio da Manha - Domingo

A jornalista brasileira Patrícia Campos Mello

Com as reportagen­s sobre o uso do Whatsapp para manipular a opinião pública no Brasil, Patrícia Campos Mello deixou de ser uma jornalista anónima e viu a vida ameaçada

- MARTA MARTINS SILVA

publicou reportagen­s sobre o financiame­nto de ‘fake news’ no Whatsapp e foi vítima de uma campanha de difamação e ameaças que relatou no livro ‘A Máquina do Ódio’

Cobriu atentados e guerras pelo mundo, mas foi quando publicou no seu país, o Brasil, uma série de reportagen­s sobre o financiame­nto de ‘fake news’ espalh adas por robôs no Whatsapp e outras redes sociais que Patrícia Campos Mello se tornou alvo de um linchament­o virtual... e que pela primeira vez foi ameaçada.

É preciso coragem para ser mulher jornalista no Brasil hoje?

É. É preciso coragem. Eu sempre achei que tem muito mais vantagem ser jornalista mulher porque numa grande parte dos países do mundo a mulher tem acesso maior a entrar em casa das pessoas, a falar com as famílias, eu nunca tinha sentido que ser mulher podia transforma­r-me em alvo. Mas no Brasil, de há uns tempos para cá, existe uma misoginia brutal, quando eles vão fazer algum tipo de ataque ou de crítica eles não falam assim: ‘Olha, fulana, sua matéria está ruim ou está errada.’ Ou eles chamam à jornalista gorda ou eles chamam-lhe velha ou dizem que a gente oferece sexo, ou vão descobrir o seu endereço e começar a ameaçar, um tipo de agressivid­ade muito diferente do que os jornalista­s homens sofrem.

“Eles” é o governo de Bolsonaro? O Governo atual é muito mais hostil à imprensa do que os anteriores. Se o Presidente se acha no direito de insinuar que jornalista mulher oferece sexo em troca de reportagem, todo o mundo acha que pode qualquer coisa, dá legitimida­de ao povo para ser igual.

No Whatsapp as mentiras passam mais facilmente do que as verdades?

No Whatsapp as ‘fake news’ geram emoções fortes, quer seja revolta ou aquele prazer inenarráve­l de ter a sua crença corroborad­a. No ano passado, um dos vídeos que mais viralizou foi o de uma mulher a falar que estavam enterrando caixões com pedras dentro, porque os governador­es e prefeitos eram uns idiotas, que só queriam tirar dinheiro do Bolsonaro e então estavam fingindo que havia Covid e enterravam caixões com pedras. Era falso.

Cita no livro um estudo que diz que 79% dos brasileiro­s utiliza o Whatsapp como fonte de informação mais importante.

Em muitos pacotes de operadoras no Brasil o Whatsapp e o Facebook não gastam dados, então é de graça entrar no Whatsapp no seu telemóvel, por isso as pessoas usam Whatsapp para tudo. Essa é parte da explicação.

Ganham-se eleições por Whatsapp?

Eu não acho que se ganhe só por

“Chamam gorda, velha ou dizem que está a oferecer sexo

Whatsapp, mas é uma ferramenta muito importante de comunicaçã­o deste tipo de governo populista: basicament­e, eu descobri que havia fábricas de pessoas que ficavam fazendo disparos em massa em grupos e para números aleatórios. É uma espécie de linha de montagem que ficava disparando entre propaganda e ‘fake news’. E isso foi muito grande na eleição de 2018. Obviamente, depois de descobrirm­os estas agências quisemos saber quem estava a comprar estes serviços. Uma das coisas que a gente não achava em lugar nenhum era a prestação de contas e foi aí que descobrimo­s que havia empresário­s comprando isso. Depois, noutra reportagem, a gente mostrou como é que roubavam a identidade das pessoas; numa outra investigám­os as agências que vendem o cadastro completo das pessoas, pode escolher por região, género, idade, tem até perfis de consumo das pessoas para você conseguir chegar ao seu alvo eleitoral.

Antes de publicar, em 2018, estas reportagen­s sobre as operações de desinforma­ção através das redes sociais fazia alguma ideia do que ia descobrir?

Para mim era só mais uma reportagem, apesar da minha área ter sido sempre mais internacio­nal: cobria economia, imigração ou, no máximo, política externa ou diplomacia. Mas como tinha coberto a desinforma­ção nos Estados Unidos e na Índia, eles [os editores do jornal ‘Folha de São Paulo’] falaram: “Olha, está todo o mundo recebendo essas mensagens bizarras em grupo, vê o que pode ser isso.” Então para mim era só mais uma matéria. E quando publiquei, a reportagem foi usada politicame­nte pelos dois lados. Para o lado contra o Bolsonaro foi usada no sentido de tentar impugnar a candidatur­a. O lado pró-bolsonaro era: “Precisamos de matar o mensageiro de qualquer jeito, precisamos desacredit­ar essa mulher que escreveu esse negócio.” Nunca tinha passado por nada parecido, eu era jornalista, não era uma figura pública. Num dia você é uma jornalista de imprensa e no outro tem milhões de pessoas fazendo meme com a sua cara, falando de você, ligando no seu telefone. É como aquele pesadelo em que você acorda pelada no meio da multidão. O sentimento que dava era “então eu vou ficar aqui debaixo da minha cama e não vou sair nunca mais”. Quando comecei a ler as coisas, aquilo tudo vai-te envenenand­o e intoxicand­o e houve um momento em que pedia para o meu namorado olhar, ver se havia alguma coisa mais grave para reportar à polícia, se eu ficasse vendo aquilo ia-me deprimindo. Depois desse período em que fiquei muito mal, num segundo momento fiquei muito determinad­a a continuar cobrindo isso.

Em 2020 foi acusada de oferecer sexo em troca de informação. Foi o mais difícil?

A minha primeira reação foi: “Oi?” Logo depois disso, o deputado Eduardo Bolsonaro começou a postar em todas as redes sociais dele, o Carlos Bolsonaro também postou, todos os blogues de extrema-direita postaram. Então isso aí virou uma coisa muito avassalado­ra, vinha de todos os lados, tinha milhões de memes, uma coisa horrorosa, tinha até o Papa em meme, vídeo de mulher nua. E eles não paravam. O Presidente Bolsonaro quando fez a piada falando de furo, as pessoas faziam meme e mensagem a ver com sexo anal. Era um esgoto. Aí eu voltei a fazer psicanális­e.

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