“O médico deve defender a liberdade de diagnóstico”
É UM DOS PIONEIROS DA TRANSPLANTAÇÃO RENAL EM PORTUGAL E EM JULHO, POUCOS MESES DEPOIS DA APOSENTADORIA, DEITOU-SE NA SITUAÇÃO FRÁGIL DAQUELE QUE PERMITE O CORTE, ENTREGOU-SE NAS MÃOS DE OUTROS PARA CUMPRIR A DOAÇÃO ANÓNIMA DO SEU RIM
Domingos Machado esteve “vários anos a maturar a ideia de ser dador anóni- mo” do órgão a que dedi- cou a vida como médico nefrologista - mais de 40 anos. Em julho, submeteu- -se à intervenção no Hos- pital de Santo António, no Porto, depois de ter tirado a limpo, sozinho, através de exames médicos, se podia concretizar a conjetura. Meados deste mês, 70 anos feitos em janeiro, e já apo- sentado depois de ter en- frentado a crise pandémica no serviço onde sempre trabalhou, no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, sentou-se para esta entre- vista na esplanada do Espa- ço Espelho d’água, em Be- lém - junto ao Tejo, hordas de turistas, e, se o viram, possivelmente terão julga- do que era um deles.
O que é um rim?
É um órgão vital, pois tem imensas funções, a mais importante das quais é ser uma espécie de depurador das toxinas que o nosso or- ganismo produz. Tem ou- tras funções, nomeada- mente de regulação da ten- são arterial, de prevenção da anemia, pois segrega hormonas, regula também o metabolismo mineral do cálcio e do fósforo e, por isso, é responsável por cer- tas doenças ósseas quando está doente e também pela prevenção destas quando está saudável. É um órgão extraordinário, pois tem uma grande reserva fun- cional. Temos dois rins e não só conseguimos viver com um único como até podemos viver com uma pequena parte do restante - em experiências com animais, reprodutíveis na espécie humana, pôde-se tirar um rim inteiro e ainda três quartos do outro e o animal ficar com a função renal normal. Ninguém pode tirar 80% de um fígado ou de um pulmão. O rim permite a transplantação, atividade sideral das minhas últimas décadas de vida: a transplantação renal, não sendo eu cirurgião. “[O que se valoriza depois da doação?] A convicção de que se está a ser útil. Há uma satisfação íntima por se ter diminuído o sofrimento de alguém”
Porque é que resolveu dar o seu?
É difícil explicar. Foi um processo de maturação lenta - estive dezenas de anos na seleção de quem se propõe dar um rim e aconselhava sempre um tempo de maturação, pois é uma decisão de facto relevante.
O que é que se valoriza, depois?
A convicção de que se está a ser útil. Há uma satisfação íntima por se ter diminuído o sofrimento de alguém. Um pouco como quando se dá sangue.
Embora uma dádiva importantíssima, é menos invasiva para quem dá...
Claro. Os riscos são diferentes, mas são quantificados. A doação só é possível depois de averiguado se a pessoa está em muito bom estado geral.
A parte psicológica também conta?...
Muito. É importante uma avaliação independente para aferir se a pessoa tem capacidades cognitivas