Correio da Manha - Domingo

Salvem o Nero!

- TEXTO ESCRITO COM A ANTIGA GRAFIA

Hámomentos­emqueopeso­dos anoslhebar­alhaasidei­as,mas D. Eva aguça olhos e ouvidos quando pressente o que é que ofogoteráf­eitoàspess­oaserebanh­osdasuaser­radaestrel­a. Há anos confinada a um cubículo nos arredores de Lisboa, a velha senhora é mimada por filhos e netos, mas os sons e os cheiros da sua infância invadem-lhe os sentidos nestes dias de fogo e destruição na serra. As chamas e os lamentos via TV atazanam-lhe a cabeça. “O que é que terá acontecido ao Nero?” E vai perguntand­o amiúde pelo Nero. A família não sabe quem é esse tal Nero. Um vizinho da aldeia? Um amigo de infância? Quem? “Ai! Coitadinho do Nero! Deus queira que se salve!” E leva dois dedos à boca tentando uma espécie de silvo parecido com um assobio.

D. Eva cresceu numa aldeia da Serra. O pai era pastor. Era no tempo em que as queimadas se faziam sob o controlo de muitos olhos. Roçar mato e queimar restolho nos campos agrícolas era arte secular, que a erva há-de crescer depois para alimento de cabras e ovelhas. O pai passava o verão na serra, às voltas com o rebanho e o pão de centeio. Trazia depois para casa pequenos cajados de lódão es

“Passava o verão na Serra, às voltas com o rebanho”

culpidos, que oferecia aos amigos. Ainda havia lobos, e pássaros, e insectos, e os cães grandes, os melhores cães-pastores do mundo - calmos mas desconfiad­os, olhos vivos e gestos fiéis. D. Eva agita-se ao ver as chamas no ecrã. “Ó mãe! Calma! Não morreu ninguém! Só ardeu mato!” Não é verdade. Arderam milhares de hectares - pinheiros, turfeiras, cervunais, bosques de teixo. Espécies que as gentes da cidade nem sabem bem o que seja. Em poucos dias, aconteceu uma calamidade ecológica e social. Poucos já vivem na Serra, só lá vão passar o verão e os fins-de-semana. D. Eva, agitada, regressa à infância. E leva de novo dois dedos à boca. Tenta assobiar, imitar o silvo agudo do pai a mandar o cão tornear o rebanho para levar as ovelhas à certa. Finalmente, a família percebe quem é o Nero. Pois claro! O cão-pastor do pai pastor. E ninguém consegue convencê-la de que o Nero sobreviveu às chamas.

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