A digitalização progressiva do mundo
A “DESCORPORIZAÇÃO” TORNA A REALIDADE EM ALGO DE INSTÁVEL E INFORME. PRECISAMOS DOS OBJECTOS PORQUE ELES TENDEM A ANCORAR E A MEDIAR A NOSSA RELAÇÃO COM O MUNDO E OS OUTROS
Sem contraponto, físico ou humano, regressamos sempre ao nosso ego. Ficamos sem mundo. E, claro, deprimimos. Ou, então, afundamos na ignorância mais atroz
Sem a `desmaterializa ção', já não teria espaço para viver
TÍTULO `Não-coisas: Transformações no Mundo em que Vivemos'
AUTOR Byung-chul Han EDITORA Relógio D'água
Jôsoares,recentementefalecido, disse que gostava de comprar livrosedelerlivros. São duas coisas distintas, explicou ele, e ambas fonte de prazer. Ele comprava em abundância; provavelmente, lia metade; mas enganam-se os que pensam que só a leitura é um “prazer superior”, como diriam os filósofos utilitaristas. A compra da coisa, a posse da coisa, a contemplação da coisa – também há prazer (e superioridade) na experiência.
Concordo com Jô Soares, ainda que a posse de coisas tenha diminuído drasticamente na minha vida. Os objectos culturais são o melhor exemplo. Ainda compro discos, livros e filmes. Mas compro muito menos porque o Spotify, o Kindle e as mil plataformas cinéfilas substituíram os objectos.
Não me queixo. Ou, pelo menos, não me queixo em demasia. Sem a caridade da “desmaterialização”, já não teria espaço para viver. Seria como um amigo paulistano, grande poeta e bibliófilo, que deixou de visitar certas partes da casa porque os livros não deixam.
É dessa “desmaterialização” que se ocupa o filósofo Byung-chul Han em mais um ensaio admirável. As coisas em volta são substituídas pelas “não-coisas”, ou seja, pela digitalização progressiva do mundo. Consequências? Várias. Ressalto duas. Em primeiro lugar, essa “descorporização” torna a realidade, a nossa realidade, em algo de instável e informe. Precisamos dos objectos porque eles tendem a ancorar, e a mediar, a nossa relação com o mundo e os outros.
Como escreve Byung-chul Han, “objecto” deriva de “obicere”, que remete para opor, contrapor, objectar. Sem essa “negatividade da oposição”, que constitui a base de toda a experiência, somos devolvi
dos a nós próprios – ensimesmados, solitários, desalmados. Sem contraponto, físico ou humano, regressamos sempre ao nosso ego. Ficamos sem mundo. E, claro, deprimimos. Ou, então, afundamos na ignorância mais atroz: temos um excesso de informações que aparecem e desaparecem na “nuvem”, mas uma dramática escassez de sabedoria. Porque a sabedoria implica silêncio, quietude, o “dom da espera”.
Daguerreótipo
No fundo, fazemos lembrar um daguerreótipo de Louis Daguerre, que o filósofo utiliza como metáfo
A sabedoria implica silêncio, quietude, o `dom da espera'
ra suprema da nossa condição acelerada e irrelevante. É impossível não citá-lo com alguma generosidade – e, em conclusão, sermos ainda capazes de nos rever no retrato: “A fotografia ‘Boulevard du Temple’ de Daguerre apresenta de facto uma rua parisiense muito animada. Mas, devido a um tempo de exposição extremamente longo, característico do daguerreótipo, tudo o que se move é levado a desaparecer. Só é visível o que permanece ‘imóvel’. O ‘Boulevard du Temple’ irradia uma paz quase aldeã. Além dos prédios e das árvores, vê-se uma única figura humana, um homem a quem engraxam os sapatos e que, por esse motivo, está parado. Assim, a ‘percepção do longo e lento’ só reconhece coisas imóveis. Tudo o que se apressa está condenado a desaparecer. O ‘Boulevard du Temple’ pode interpretar-se como um mundo visto com o olhar divino. Ao seu olhar redentor só aparecem aqueles que permanecem numa imobilidade contemplativa. ‘É o silêncio que redime’.”