MIRAGAIA
A ALDEIA ALEGRE DENTRO DO PORTO
Para muitos, Miragaia é correr de edifícios de granito de frente para o rio, com os seus arcos e a Alfândega. E, contudo, ela começa junto a Cedofeita e estende-se como a roupa nos seus estendais dali até ao Douro, ao lado da muralha fernandina. Lá dentro, encontram-se artes e ofícios, tripeiros de gema e forasteiros que ali ficaram, por amor ao lugar. Há um restaurante que é uma IPSS e outro com uma carta à base de pão alentejano, um terraço onde se fazem concertos de jazz gratuitos, uma coletividade quase centenária e uma francesinha gigante que poucos conseguiram derrotar. E alegria, muita, dos vizinhos, que dão sempre os bons-dias.
Virgínia França, nascida e criada no Porto, associava Miragaia à zona da Alfândega, mais ribeirinha, sem imaginar que ainda abrange parte da Rua do Rosário, no quarteirão das artes, onde fica a concept store pela qual é responsável. Em rigor, a loja do espaço CRU Cowork, que vende artigos essencialmente portugueses, como roupa, calçado ou joias, está numa parte da rua que já não pertence a Miragaia, mas a conversa sobre as mudanças na cidade mostra como Virgínia vê com bons olhos o crescimento do Porto à boleia do turismo. Apesar de alguns contras, como o afastamento dos moradores do centro, que muitos hão de criticar neste percurso pela encosta de Miragaia.
Começamos ali mesmo, na Rua do Rosário, em pleno miolo central da cidade, para seguir até à beira-rio. Rosário não duvida que as pessoas são o mais importante. «Temos de ser diferentes, para continuarem a visitar-nos. Não basta a comida. Temos de ter as pessoas que lhe dão a alma.» Aquelas que falam alto, com o coração na boca, que estendem roupa à janela. Em suma, aquilo que
ainda encontramos em Miragaia. É o que vai perceber indo dali pelo Museu Nacional Soares dos Reis e arredores do hospital de Santo António até começar a entrar num circuico mais íntimo, na Rua Dr. Barbosa de Castro, onde nasceu o escritor Almeida Garrett, até às Virtudes.
Ali no passeio das Virtudes, onde dantes se passeava – e exibia – a burguesia do Porto, fica agora um dos pontos de encontros favoritos da cidade nos entardeceres de verão. E também, para quem percebe de tasquinhas tripeiras,
«ISTO MUDOU MAIS DE MIL POR CENTO», DIZ O DONO DA TABERNA COM OS MELHORES BOLINHOS DE BACALHAU DO PORTO.
uma das melhores: a Taberna Santo António. Hermínia Mimoso e Victor Almeida são os responsáveis por aqueles que são, eleitos de boca, os melhores bolinhos de bacalhau da cidade – até o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa já os foi provar. Diz-nos Victor que aquelas paredes já pertencem à freguesia da Vitória, mas estar um pé fora de Miragaia não faz dano – dano seria saírem dali os rissóis, as tripas e a bola de carne, os outros pratos fortes da casa que tem clientes desde o lavrador até ao mais alto funcionário, há quase 30 anos.
Nesse período, a Taberna manteve-se mas o demais não. «Isto mudou mais de mil por cento», afirma Victor. A zona, outrora degradada, sofreu muitas alterações, confirma Luísa Neves, gerente do vizinho Torreão, restaurante que serve comida tradicional mais sofisticada, como bochechas de porco preto confitadas com puré cremoso de grão-de-bico. Para comer e não só, vale a pena lá entrar, já que o terraço do restaurante assenta numa das torres da muralha do século XIV, com vista para o rio, telhados e claraboias. Há uma claraboia, lindíssima, no interior da casa, ela própria um repositório de muitas histórias, que acolhe agora a IPSS Serviços de Assistência Organizações de Maria (SAOM).
É para a sua obra social e para a manutenção do edifício que vai o lucro do Torreão, criado quase só com gente da casa, conta Luísa, também coordenadora do projeto Dar Sentido à Vida, que procura capacitar pessoas sem-abrigo dando-lhes formação na área da hotelaria.
PÃO E JAZZ COM VISTA PARA O DOURO Seguindo dali até à Rua de Tomás Gonzaga – o poeta de Miragaia –, vai ficando o rio Douro cada vez mais próximo. Foi aí que os amigos João Miranda, António Lamas e Verónica Dias abriram o restaurante Intrigo, cujo terraço coberto oferece uma imagem menos gasta do rio. Tibornas, açordas e outros pratos integram a oferta, baseada no pão do tipo alentejano, feito ali de forma artesanal. «O pão é símbolo de união e muito portu-
guês», sublinha Verónica. A sua importância era tal, que se faziam rezas antes de o pôr no forno. Uma está no menu: «Deus te finte,/ Deus te acrescente,/ E as almas do céu para sempre./ A Virgem te ponha a mão/ Que cresça mais um pão.»
Se abrir um negócio nesta área mais periférica outrora pareceria arriscado, hoje é natural, defende João Miranda. Nos últimos anos, deteta um dinamismo diferente na zona, sem lhe deformar a face: «Gosto de viver em Miragaia. As pessoas ainda se cumprimentam na rua. São muito intensas. Os mo- radores mais antigos levam a mal se não se diz bom dia», diz João, assinalando que também há portugueses a redescobrir esta zona do Porto, que é para se conhecer a pé.
De outra maneira não se pode conhecer as Escadas do Caminho Novo, que correm ao lado da muralha fernandina. É por elas que se chega ao Mirajazz, um bar com mais um terraço com vista para o Douro, palco de concertos de jazz gratuitos, aos sábados e domingos, ao fim da tarde, desde que não chova. Funciona num espaço do Grupo Musical de Miragaia, instalado no mesmo edi-