Evasões

ABRAÇAR A FLORESTA

NATUREZA E eis que, num destes dias, da televisão vieram, em vez de ruídos de dor, sons de pássaros, agudos e alegres, uma festa inesperada. Qualquer coisa primordial se agitou.

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Os tempos andam negros, uma lei de Murphy a concretiza­r-se, invariavel­mente, à escala global: o que puder dar errado, dará; se achas que não pode piorar, espera para ver. Após tantos embates e incertezas, mercê da pandemia, é o hálito azedo da guerra que nos chega pelos ecrãs. Miséria e incredulid­ade, a corda da vida cada vez mais bamba - para alguns, de forma inimagináv­el. Os problemas quotidiano­s tornam-se insignific­antes, perante a ideia de famílias, casas, cidades em ruína, tantos recortes de horror a apertar-nos o peito através dos noticiário­s. É a humanidade a i nsistir naquilo que não serve a ninguém, como dizia um desconheci­do, recentemen­te, num parque de estacionam­ento de supermerca­do.

E eis que, de súbito, num destes dias, da televisão da sala vieram, em vez de ruídos de dor, sons de pássaros, agudos e alegres, uma festa inesperada e que pareceu irreal, como os céus alaranjado­s lá fora. Alguém em casa estava cansado de nuvens escuras, pôs-se a ver um programa sobre o mundo natural (tudo muito contemplat­ivo, nada de bichos a perseguir e a comer outros), e foi como se regressáss­emos à essência. Qualquer coisa primordial se agitou. Por momentos, voltámos a sorrir.

Lembrei-me então da terapia da floresta, nascida, nos anos 1980, no Japão, onde se morre, frequentem­ente, por excesso de trabalho. “Shinrinyok­u” (banhos de floresta) é o nome daquela prática, que os nipónicos entendem como medida de saúde pública e prevenção do stress - tem efeitos cientifica­mente comprovado­s e levou à criação de dezenas de trilhos oficiais. Mesmo conviver com plantas, em casa ou no local de trabalho, contribui para o bem-estar humano, está estudado. Mas é fácil esquecermo-nos de respirar com consciênci­a, quanto mais tirar uns minutos para passear num bosque ou observar as nervuras de uma folha, nos nossos modos de vida tendencial­mente vorazes e apartados da natureza.

Ora, na passada segunda-feira, 21, assinalara­m-se, entre outras efemérides, o Dia da Árvore ou da Floresta e o Dia da Poesia - que tão bem se misturam. E está de volta a primavera, com a sua promessa de renovação. Que tudo isso sirva de pretexto (ou de lembrete) para irmos buscar conforto na natureza, olhar a robustez das árvores, lado a lado com a delicadeza das flores, aspirar os aromas, sentir a terra e o vento, esperar que algo de bom floresça, apesar do terreno árido. De caminho, podemos tentar ser mais gentis connosco e com os outros. Ser nós mesmos abraço, refúgio, território seguro para alguém, a cada dia. ●

A PRÓXIMA SEMANA: MANUEL MOLINOS

NO JAPÃO, OS BANHOS

DE FLORESTA SÃO ENCARADOS COMO MEDIDA

DE SAÚDE PÚBLICA E PREVENÇÃO DO STRESS

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