Evasões

UM CERTO MISTICISMO QUE NÃO SE EXPLICA

SANTIAGO DE COMPOSTELA Pedalar nove horas por dia a partir do Porto, acusar as boas dores físicas e, no final, sentir um júbilo quase infantil, de conquista e superação

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Empreender uma viagem até Santiago de Compostela obriga, antes de tudo, a alguma preparação física. Façamo-la a pé ou de bicicleta. No meu caso, fui montado em duas rodas. Escolhi o princípio do verão para me lançar na aventura com uns amigos. Carrinha de apoio com alimentaçã­o e bens pessoais, malta mais experienci­ada nas lides cicloturís­ticas, enfim, tudo mais ou menos organizado para dar uma valente coça nos músculos. Algo que, ao fim do primeiro dia, se cumpriu na plenitude.

Por te i mosia dos mais calejados, decidimos ficar a dormir num albergue de peregrinos, onde há regras muito específica­s e a democracia é para não ser discutida. Há uma ordem para receber os viajantes (a cavalo, a pé, de bicicleta, enfim...) e ficamos dependente­s das vagas. Afortunada­mente (pensava eu...), tínhamos lugar. E que lugar! Uma sala ampla, pouco ventilada, com gente exausta de várias nacionalid­ades que ressonava em diferentes dialetos. Conclusão: na primeira noite não preguei olho. Abençoado banho de água fria nos chuveiros, abençoada pomada retemperad­ora.

A primeira noite foi realmente a mais dura. Mas o entusiasmo e a camaradage­m depressa fizeram esquecer as maleitas do físico. Pernas ao caminho e seguimos viagem. O melhor de tudo são os momentos de silêncio, em que vamos a pedalar de forma mecanizada com a cabeça estacionad­a noutro lugar, num diálogo constante entre o corpo e a mente. Não sou nada de misticismo­s, mas não posso negar que vivenciamo­s episódios de alguma transcendê­ncia espiritual, em que somos confrontad­os com reflexões que, à vista desarmada, julgaríamo­s banais e desconexas.

Pedalar uma média de nove horas por dia desde a Sé do Porto deu para muita coisa. São centenas de peregrinos ao longo do trajeto, a quem atiramos um obrigatóri­o “bom caminho”, há gente a pé, de cavalo, de bicicleta, velhos, novos, famílias, gente sozinha a cumprir um desígnio. Criam-se laços com desconheci­dos, partilhams­e alimentos e histórias, pagam-se cervejas em botecos esconsos, entra-se, no fundo, na dinâmica natural daquela comunidade. Chegar a Santiago de Compostela, ao fim de dois dias e meio, e cruzar a meta foi um bálsamo indescrití­vel. As dores dissipam-se e somos invadidos por um júbilo quase infantil, de conquista e superação. Chegar ao fim é o princípio de algo novo. Quem vai, sabe que tem de voltar. Seja pela costa, seja pelo interior, seja por onde for.

Uma certeza temos: o caminho será sempre diferente. Mas será sempre um bom caminho. ●

A PRÓXIMA SEMANA: CARINA FONSECA

QUEM VAI, SABE QUE TEM DE VOLTAR. UMA CERTEZA TEMOS:

O CAMINHO SERÁ SEMPRE DIFERENTE. MAS SERÁ SEMPRE

UM BOM CAMINHO.

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