“O NOSSO TRABALHO É PREPARAR A EMPRESA PARA A GERAÇÃO SEGUINTE”
O responsável da Vista Alegre conta como quer fazer da marca bicentenária um estilo de vida, entrando em novas categorias e sempre com referências históricas
Duzentos anos de história são um lastro ou um privilégio quando trabalhamos numa indústria que exige tanta inovação?
ambos. a vantagem é não estarmos a começar do zero, ter um acervo gigante, muitas referências para se trabalhar e projetar o futuro. O desafio está em conjugar a tradição com a modernidade, sem beliscar o ADN da marca. Há muitas referências antigas, muitos clientes que vêm de trás e que às vezes poderiam estranhar alguma contemporaneidade. E isso foi uma discussão, ainda hoje é: qual é a identidade da marca? Clássica ou contemporânea? Mas uma coisa muito interessante, visível quando se visita o museu, é que a marca sempre acompanhou os tempos e os movimentos artísticos. Mesmo hoje, quando olhamos para algumas peças, pensamos como foi possível fazer algumas delas, que eram quase arriscadas. Só que foi o facto de a marca acompanhar os tempos é que lhe permitiu manter-se ao longo dos 200 anos. Depois, chegou a uma altura, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, em que a Vista alegre achou que devia ser apenas clássica e as novas gerações afastaram-se, ou seja: quando parou de acompanhar os tempos, começou a ter dificuldades.
Voltar à contemporaneidade foi fundamental para a recuperação da marca?
Sim. Mas ainda hoje é um dos maiores desafios, conjugar o clássico com o contemporâneo. O core principal dos clientes é clássico. Portanto, temos de fazer uma coisa muito bem-feita, porque não queremos perder as antigas gerações, aquelas que suportam a marca e que estiveram presentes mesmo nos momentos mais difíceis.
Tem sido um jogo de equilíbrio?
Sim. Perceber qual o ADN da marca, o que tem de se manter, o que não pode ser beliscado e, respeitando isso, como podemos trabalhar daqui para a frente? E, a partir do momento em que se estabelece bem o que a marca deve ou não ser, define-se um conjunto de regras que nos ajuda a trabalhar no dia a dia. Não fazemos um design radical ou coisas que as pessoas não entendem… Quando queremos ser muito disruptivos, fazemos edições limitadas.
Para controlar o risco?
isso, e vamos avaliando pelo tipo de consumo dos clientes mais fiéis à marca. Por exemplo: os principais clientes das peças dos artistas contemporâneos são sobretudo colecionadores e clientes mais antigos. Sendo que hoje temos uma oferta 30% clássica e 70% contemporânea. Este equilíbrio pode parecer simples, mas não é nada [risos].
Como se pensa estrategicamente a marca, nesta altura, quando já tem presença em 90 países?
No contexto português a marca é grande, mas no contexto europeu é uma ervilha. Portanto, é para continuar a crescer. Nós partilhamos todos um princípio que nos é muito presente: estamos aqui de passagem. isto é uma marca que vem de trás, com uma herança muito grande, e nós temos a sorte – e é mesmo uma sorte! – de estar aqui agora, no bicentenário. Mas o nosso trabalho é preparar a empresa para a geração seguinte, porque esta é uma marca que tem a obrigação e o potencial de fazer mais 200 ou 400 anos. Não se pode deixar morrer uma marca destas. Temos essa responsabilidade e temos consciência dela. Partindo desse princípio, a estratégia assenta em coisas mais de curto prazo, e outras de longo prazo. a primeira fase foi recuperá-la, depois internacionalizá-la e agora estamos na fase de torná-la uma marca de luxo. Deixar de ser apenas uma marca de porcelana e de cristal, para ser uma marca que vende um certo estilo de vida.
Entraram em outras categorias, como o têxtil. É para continuar?
Sim, queremos sair da mesa, somente, e passar a marca também para a decoração de interiores, porque as coisas estão relacionadas. Se tenho um serviço de mesa, sirvo-o numa toalha de mesa que tem de ter uma mesa, que, por sua vez, tem de ter uma cadeira... e de repente estamos num ambiente da sala. Ora esta reflete uma personalidade que pode passar, por exemplo, para acessórios de moda. Queremos pensar num conceito de estilo de vida. Esse é o caminho em que estamos a trabalhar, o da entrada em outras categorias, que podem ser de dois tipos: óbvias, como a cutelaria e a iluminação, ou as menos óbvias, como o têxtil de casa (mantas) e acessórios de moda (écharpes). E isto até para perceber a elasticidade da marca. a Vista alegre tem uma enorme personalidade gráfica e, portanto, fazia sentido que as coisas não morressem na porcelana e conseguissem criar um ambiente. O têxtil é feito com base no acervo histórico, não vamos fazer desenhos porque sim. Neste ano, apresentámos a primeira coleção têxtil de mesa, em colaboração com os bordados da Madeira – a bordal – e a bovi, do Norte do País. Também lançámos a primeira coleção de mobiliário, que desenvolvemos com um estúdio italiano.
Vai haver vários momentos de comemoração dos 200 anos da Vista Alegre. Qual deles é que destacaria?
a exposição do Palácio Nacional da ajuda, em outubro, não só pela dimensão mas também pelo facto – depois divulgaremos mais [risos] – de que vai requerer a recuperação de algumas zonas do palácio, que tem um acervo incrível de peças Vista alegre. Esse é o mais marcante, mas a festa de julho, aqui na fábrica, também será muito marcante.
pos houve em que eram mais de 500 os habitantes daquele lugar. Hoje não passam de 40 – a maior parte já está reformada, mas tem direito a manter a habitação.
Os edifícios da creche e do posto de saúde têm agora outras funções, mas o teatro continua a ser um lugar de encontro, com direito a grupo de teatro residente (A Ribalta) e uma importante parceria com o município de Aveiro, que garante a programação cultural ao longo do ano. Margarida garante que ainda assiste a muitos espetáculos, mas abandonou o palco há já alguns anos. No entanto, “ainda há alguns funcionários da Vista Alegre no grupo, que personifica o teatro amador em si”, salienta. E aproveita para recordar, com um sorriso terno, quando ensaiou crianças para o teatro de Natal, realçando a importância que a Igreja também tinha na dinamização do lugar.
Consta que, na verdade, a fábrica da Vista Alegre foi ali construída graças à devoção de António Pinto Basto, que se terá apaixonado, antes de tudo, pela capela que hoje é monumento nacional. Dedicada à Nossa Senhora da Penha de França, durante décadas era o lugar semanal de encontro entre todos aqueles que faziam a empresa funcionar. Atualmente, a escassez de sacerdotes da região não permite as celebrações eucarísticas semanais, mas a festa em honra da padroeira é um acontecimento anual (até já integra o inventário nacional de património imaterial), a que acorrem centenas de visitantes: no primeiro fim de semana de julho, a imagem que geralmente encabeça o altar é retirada para um andor e sai da capela rumo a uma procissão em redor do Sítio da Vista Alegre. Neste ano, a celebração reveste-se de especial importância, uma vez que será também o momento alto das celebrações do bicentenário da Vista Alegre.
Mas voltemos às pessoas e à fábrica que, ainda que mantenha as paredes originais, foi profundamente alterada ao longo da sua existência. Enquanto nos equipamos para entrar nos lugares habitualmente vedados aos visitantes – biqueiras de aço e batas –, somos informados de que iniciaremos o dia na manufatura, onde hábeis artesãos moldam as peças de vários formatos: cães, pássaros, Nossas Senhoras... Ricardo explica-nos os processos químicos por que passam os materiais, enquanto retira dos moldes, delicadamente, pequenas flores que vão servir para os adornos de uma jarra que já espera numa prateleira reservada para o efeito. Cada uma destas peças é colada à mão, individualmente, e é trabalho para durar um dia.
Umas bancadas mais atrás, Priscila está a fazer um cão cubista – um clássico da marca, já –, composto por quatro peças. Um dia de trabalho permite-lhe fazer cerca de uma dúzia. Os tempos de cada um são monitorizados, não apenas para controlo mas também para se perceber onde é que um artesão pode ter mais dificuldades e corrigir-se o processo.
Saímos da chamada sala da conformação, a tal onde se fazem moldes, e seguimos para uma área mais alargada em que Cândida, funcionária da Vista Alegre há 35 anos, se dedica ao acabamento de taças, que passam dela para o controlo de qualidade. Ao seu lado, Carlos Branco retira cuidadosamente, mas com impressionante velocidade, pratos e taças de uma plataforma giratória para os colocar a secar. Há uma espécie de barulho de fundo que nos acompanha no caminho, provocado pelas máquinas constantes e rigorosas. De olhos postos no trabalho, os funcionários mexem-se com uma precisão que nos faz lembrar os mecanismos dos relógios: toda a gente sabe exatamente o seu lugar nesta engrenagem que não pode parar, para não criar entropia no processo.
MÃO HUMANA, SEMPRE
Ana Paula está há 36 anos na Vista Alegre, onde é uma oleira de mão-cheia. Encontrámo-la junto a um conjunto de tampas que esta, metodicamente, confirma e põe a secar. “O processo de secagem demora entre 17 e 18 minutos, e saem dali cerca de 250 tampas por dia”, conta-nos sem parar de trabalhar. É na olaria que Ana Paula gosta de estar, e di-lo com a convicção de quem já passou por outros departamentos ao longo das quase quatro décadas de casa. “Gostei muito da escultura, também passei pelos decalques e detestei o lapidário”, diz com um sorriso tímido. “Mas gosto de estar aqui, nas tampas. Para nós, oleiros, cada peça é única”, explica.
Até nas áreas mais mecanizadas – como esta, onde se fazem tampas, taças, pratos, travessas –, nenhuma peça sai para o mercado sem um cuidadoso acabamento ou, pelo menos, verificação humana. É este o cerne do negócio da empresa, que ao longo dos anos investiu em inovação e desenvolvimento, mas que rejeita perder a exclusividade que a atenção humana garante a cada peça. Nas chávenas mais simples, por exemplo, o acabamento é automático, mas cada asa é colada manualmente, passando depois por um rigoroso controlo de qualidade. Mais à frente, os fornos aguardam pelas peças – que, consoante a respetiva composição,
Há sorrisos, descontração e muita rapidez nos movimentos – mesmo nos processos que nos parecem altamente delicados
necessitam de maior ou de menor número de cozeduras, mas nunca menos de duas – que entram em tabuleiros cheios, levados por carrinhos automáticos, que passeiam por percursos previamente definidos dentro do complexo industrial. Esta foi uma das grandes evoluções da fábrica que, com opções como esta, permitiram reduzir significativamente o risco de quebras e também o tempo que as peças levavam a passar entre os vários momentos de produção. Se antigamente os tabuleiros cheios de porcelana eram carregados por funcionários fabris, agora tudo é robotizado até à saída dos fornos gigantes que ocupam grande parte da área central do complexo. Olhando para dentro dos equipamentos, a imagem é impressionante: atingem uma temperatura superior a mil graus centígrados e são cozidas milhares de peças por dia, mesmo que algumas delas precisem de 24 horas de cozedura.
Entre nós passam trabalhadores que verificam se as máquinas estão a funcionar corretamente, ajustam percursos, confirmam processos. Há sorrisos, descontração e muita rapidez nos movimentos – mesmo nos processos que nos parecem altamente delicados. É o caso do processo de vidragem de travessas, que Luís, funcionário n.º 675, leva a cabo com destreza e graciosidade impressionantes. Da prateleira para a sua mão, que submerge no líquido de vidragem, e daí para o controlo de qualidade, onde dois colegas rapidamente verificam e colocam a peça noutra plataforma – sem hesitações, sem paragens, sem dúvidas. É claro que nem sempre tudo corre bem. Ao longo do caminho é possível, também, encontrar vários recipientes com peças partidas, rachadas ou com defeitos – diz-se que é um lugar ótimo para libertar o stresse, uma vez que se pode sempre atirar um ou outro prato já partido e parti-lo ainda mais!
REJUVENESCER PARA PRESERVAR
É precisamente junto a uma dessas caixas cheiinha de porcelana em cacos que nos encontramos com Tomás Rosado que, aos 24 anos, é o mais recente funcionário da Vista Alegre. Licenciado em Engenharia de Materiais pela Universidade de Aveiro, chegou à fábrica há cerca de ano e meio e trabalha no departamento de Desenvolvimento e Inovação. Aqui, desenha peças, maquina-as e produ-las, por forma a acelerar processos de prototipagem e garantir maior flexibilidade à empresa. “Estamos a tentar fazer tudo dentro de casa, porque isso reduz bastante os tempos de resposta que podemos dar aos clientes e torna-nos mais ágeis e competitivos”, explica, enquanto nos mostra as salas de trabalho – que, por motivos óbvios, não podem ser fotografadas – e a nova aquisição, que o tem encantado: a impressora 3D que está a funcionar a todo o vapor. “Trabalhar numa empresa com 200 anos e ver o orgulho que as pessoas têm nisso é muito interessante”, conta este escalabitano radicado em Aveiro desde que entrou para a universidade. “Eu nem gostava muito de cerâmica, sempre me interessei mais por metais, mas agora estou a achar
De auscultadores nos ouvidos, sente-se a concentração de quem não pode falhar um traço
muito divertido”, admite, salientando que o facto de trabalhar paredes-meias com a área da produção facilita muito o trabalho – torna mais rápida a identificação dos problemas, é possível trocar impressões com os artesãos e perceber qual o melhor caminho para se chegar a melhores resultados. E garante que a idade da empresa não é, de todo, um impedimento à inovação. Na verdade, acredita que a experiência acumulada é uma importante ajuda quando se quer fazer mais e melhor, porque se evitam muitos erros que, em qualquer momento da história, já terão sido cometidos.
Encaminhamo-nos, então, para uma zona em que a brancura da cerâmica acabada de cozer começa a dar lugar à cor. É aqui que as peças ganham uma espécie de remate final, através dos decalques ou das pinturas que recebem de mãos experientes e cuidadosas. Lúcia Vidal, com 47 anos de Vista Alegre e 63 de vida, é a funcionária mais antiga. Fala com a EXAME com um sorriso mais tímido, revelando que é a terceira geração da família a fazer parte dos quadros da fábrica. Entrou como aprendiz, passou pelo embalamento, deu apoio nas marcações, mas foi na estamparia que encontrou a maior satisfação.
Recorda ainda a “altura mais difícil” pela qual a empresa passou, “mas agora acho que está a correr bem. Sentimo-nos orgulhosos por a empresa dar emprego a tanta gente”, adianta, enquanto nos conta que, à semelhança de Margarida Marieiro, fez parte do grupo de Teatro da Vista Alegre e até representou a fábrica no desfile de Carnaval do município.
Quando lhe perguntamos que peças mais gostou de fazer, é rápida na resposta: “Gostei muito de fazer uma peça única, que foi uma égua pintada à mão, e gostei muito de fazer o cantil”. Fala com a EXAME enquanto retira pratos de uma pequena máquina de lavar e os prepara para receber decalques pelas mãos de colegas como Júlia, que está a estampar um prato-calendário comemorativo dos 200 anos da marca. À sua frente está Maria Angelis, vinda da Venezuela há menos de dois anos. “Adoro trabalhar aqui. É preciso paciência e dedicação, mas desde que vim para Portugal estou aqui e gosto muito”, conta, sem levantar os olhos do trabalho nem abrandar o ritmo das mãos: é com muita destreza que as mulheres destas bancas colocam os decalques em cima dos pratos que estão a decorar, molham-nos, passam com esponjas, acertam as ima
gens, voltam a passar as esponjas... Os movimentos são cadenciados, rápidos, seguros. Lúcia está, no dia em que falámos com ela, a dar uma ajuda neste departamento, porque faltou uma das funcionárias. Como tem muita experiência, é isto que acontece com regularidade, agora: vai suprindo as faltas de quem não está, para garantir que a engrenagem não para, assegurando com experiência a prossecução dos trabalhos.
A SALA MAIS BONITA
É verdade que se pede, genericamente, aos jornalistas que não façam juízos de valor sobre as coisas que veem, sobretudo se forem considerações subjetivas, mas também é verdade que dentro da fábrica da Vista Alegre há mesmo uma sala mais bonita, pelo menos para quem não entende nada de arte e só consegue apreciar o trabalho final: é dali que saem as peças mais exclusivas e especiais da marca. Falamos da sala de pintura, onde só alguns têm lugar, sobretudo porque a exigência do trabalho é tal que é difícil garantir um lugar naquelas bancadas.
Num primeiro andar muito bem iluminado, com janelões a rasgar as paredes e um silêncio que se torna bastante audível, pouco mais de uma dezena de pintores está de olhos postos nos modelos à sua frente. De auscultadores nos ouvidos, sente-se a concentração de quem não pode falhar um traço. Anabela e Margarida são pintoras da Vista Alegre há cerca de 40 anos. Trabalham lado a lado: neste momento, uma dedica-se a um jarrão e outra a um prato com zebras, muito especial e isto não porque seja particularmente complexo – ou, melhor, a nós tudo nos parece absolutamente impossível de fazer, mas a facilidade com que estes artesãos fazem aparecer formas e cores revela-nos que talvez só não sejamos realmente talhados para um trabalho deste género. Aquele prato das zebras é especial porque foi desenhado por Arminda, uma das pintoras da Vista Alegre, e escolhido, depois de submetido a um concurso interno, para ser produzido e vendido pela marca. Tem um preço de venda ao público de €3000, não apenas por ser exclusivo, pois cada peça é única – uma vez que é pintada à mão –, mas também porque precisa de muitas horas de
Desde cedo a Vista alegre chamou a si hábeis artesãos e conceituados desenhadores