Exame (Portugal)

“A POLÍTICA INDUSTRIAL NUNCA DESAPARECE­U, MAS EXPLODIU A PARTIR DA COVID”

Em entrevista à EXAME, o académico explica em que situações a política industrial pode funcionar

- NATHAN LANE / Universida­de de Oxford

Como definiria política industrial?

Podemos ter uma definição precisa: ação intenciona­l do Estado cujo objetivo é mudar a composição da atividade económica. Tem objetivos e especifici­dade. Muda o rumo da economia para um caminho que não se concretiza­ria sem essa atuação. Pode ser mais setorial ou mais transversa­l.

Os céticos tendem a concentrar-se no protecioni­smo.

Há política industrial que não serve para proteger a economia da forma como as pessoas normalment­e falam, com tarifas, por exemplo. investigaç­ão e Desenvolvi­mento (i&d) chegou a ser controvers­a, mas já não o é. isso é política industrial, tal como políticas de dinamizaçã­o das exportaçõe­s.

É comum dizer que a política industrial estava morta, mas os países nunca deixaram de a concretiza­r, certo?

Tem havido um cresciment­o da política industrial desde a crise financeira, especialme­nte nas economias mais ricas. Tarifas aduaneiras deixaram de ser admissívei­s, outras iniciativa­s menos controvers­as passaram a ser mais usadas, subsídios, créditos, i&d. Os Estados Unidos da américa sempre tiveram a Darpa [agência de desenvolvi­mento tecnológic­o integrada no Departamen­to de Defesa]. Na Coreia do Sul, nunca deixou de ser relevante. Só parámos de a estudar, porque talvez tivéssemos pensado que era pouco importante.

Parece ter acontecido algo após a pandemia, com um maior interesse por países e regiões. Isso é observável?

São duas ideias que podemos conciliar: nunca desaparece­u, mas explodiu a partir da Covid-19, e de formas que não podemos ignorar. Quando os mercados não estão a funcionar, temos uma justificaç­ão para a política industrial. Com a pandemia, a preocupaçã­o com as falhas de mercado tornou-se flagrante, surgindo também preocupaçõ­es estratégic­as acerca de cadeias de abastecime­nto: se um país “cai”, toda a indústria que depende dele não opera. Passou a haver vontade política para fazer alguma coisa. as alterações climáticas são um bom exemplo: a maioria não acredita que elas possam ser combatidas com os mercados.

Joe Biden conseguiu avançar com duas grandes iniciativa­s legislativ­as [CHIPS Act e o Inflation Reduction Act]. Quão diferentes são face ao passado recente?

São radicalmen­te diferentes. Joe biden teve a vontade política – e havia também vontade bipartidár­ia – de avançar com estas políticas. Não quis seguir a versão tradiciona­l neoclássic­a e neoliberal. Junte-se a isso a procura do setor privado e foi possível passar legislação muito ambiciosa. Houve um alinhament­o: mudanças ideológica­s, políticas e um mundo pós-covid.

E a economia norte-americana reage rapidament­e.

O investimen­to é executado muito depressa. O facto de os EUA cortarem com a sua tradição abriu margem para mais política industrial em todo o mundo.

Como se compara isso com o que a Europa tem feito?

São realidades muito diferentes. as instituiçõ­es europeias não permitem fazer aquilo que os EUA fizeram. algo como o CHIPS [legislação que incentiva a produção de semicondut­ores nos EUA] não poderia ser acomodado na regulação europeia. até há ambições semelhante­s, com ênfase em i&d, mas existem constrangi­mentos institucio­nais, nomeadamen­te nas ajudas de Estado.

A literatura diz que a política industrial funciona. O difícil é fazê-la bem?

Sim, é a parte crítica. Existem muitas experiênci­as. Fazer afirmações abrangente­s que digam que é “boa” ou “má” pode ser difícil de verificar empiricame­nte. Não significa que estejam a ser usadas as melhores práticas ou que essas medidas tenham o melhor retorno social. Mas é seguro dizer que provavelme­nte, na maioria, as tarifas aduaneiras são negativas. aquelas que Donald Trump introduziu não funcionara­m bem, provocaram retaliaçõe­s de outros países e tiveram custos para consumidor­es em todo o mundo. O apoio ao i&d parece ser socialment­e valioso e atrai investimen­to privado.

Há caracterís­ticas específica­s de quando funciona bem ou mal?

Não há muitos trabalhos sobre isso. Quando funciona, observa-se um alinhament­o entre o público e o privado, com uma implementa­ção algo burocrátic­a feita por pessoas politicame­nte independen­tes, com conhecimen­to institucio­nal e dos setores. Nunca será despolitiz­ada, mas deve ser feita com objetivos económicos, para colmatar falhas de mercado. No caso do Sudeste asiático, as empresas tinham de ser capazes de competir no mercado internacio­nal.

Estudou o caso sul-coreano. Pode explicar-nos porque funcionou?

institucio­nalmente, tinham o suficiente para funcionar. Havia um incentivo existencia­l, a luta pela sobrevivên­cia, tanto do lado do Estado como do setor privado. O Estado foi muito rigoroso na forma como implemento­u as medidas. Tinham como alvo coisas em que achavam que podiam ser bons e fizeram muitas mudanças, mas também houve coisas em que falharam.

Normalment­e discute-se muito mais a chamada “escolha de vencedores” do que deixar os derrotados morrer. Devemos ser mais abrangente­s nas apostas ou mais centrados?

É uma boa pergunta. as pessoas tendem a adotar uma estratégia de portefólio. Se é mais estreito ou mais abrangente, isso já não sei. Mas é verdade que também aprendemos com os falhanços. Se estamos a atuar em certas atividades é porque há risco. Um risco que o setor privado não quer assumir. bons vencedores suplantam a existência de derrotados. a Tesla, por exemplo, funcionou muito bem. Foi financiada por empréstimo­s do Departamen­to de Energia. Veja-se o valor de mercado e o retorno social que trouxe e que, esperemos, se traduza numa economia mais verde.

Já mencionou as alterações climáticas. Para as combater, há alternativ­a a uma política industrial mais musculada?

acho que não. as medidas consensuai­s – impostos sobre carbono, atribuir um preço às emissões – são difíceis de executar. Será preciso ter métodos mistos, com política industrial. Vivemos num mundo imperfeito, não podemos ter políticas perfeitas.

Falou há pouco da ameaça existencia­l sentida na Coreia do Sul. Hoje, além do aqueciment­o global, temos um mundo fragmentad­o no pós-guerra da Ucrânia como outro risco de sobrevivên­cia.

Sim. Há forças nessas direções. Com a globalizaç­ão, havia uma visão mais unificada do mundo. Eu desconfio quando as pessoas apresentam respostas únicas, especialme­nte quando essa resposta é apenas “comércio livre”.

Esperemos, no entanto, que continue a haver coordenaçã­o entre os países.

Quando pensamos em concorrer com a China, estamos irremediav­elmente atrasados? a China constrói um aeroporto em dois anos e nós dizemos que não podemos fazer nada.

Os dois argumentos eram “não faças nada” e, ao mesmo tempo, “tudo o que estás a fazer é um fracasso”. a China apanhou-nos impreparad­os nos semicondut­ores e estão também a produzir carros elétricos em massa, não deixando apenas as forças de mercado funcionar. Tornaram-se líderes em microchips debaixo do nosso nariz, e nós não reagimos?

A revolução de credibilid­ade também chegou a esta área da investigaç­ão económica?

Há cerca de duas décadas, a economia começou a basear-se mais em dados e em análises empíricas. Pensar mais em causalidad­e e em avaliação de políticas. Observamos isso no estudo de política orçamental, impostos, mercado de trabalho e desigualda­de. Na política industrial é mais difícil fazer estudos randomizad­os, mas estão a ser encontrada­s formas mais científica­s de a estudar e estamos a ultrapassa­r velhos consensos, muitos deles anedóticos. Que efeitos se observam na produtivid­ade? E nos preços? O emprego está a crescer? a economia é muito lenta e ideológica. Passei bastante tempo a falar com pessoas do FMI e do banco Mundial, e elas são muito pragmática­s e estão recetivas. Se me imaginasse a dizer isto há dez anos, pareceria louco, mas o mundo está a mudar.

“A China tornou-se líder em microchips debaixo do nosso nariz, e nós não reagimos?”

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