“A POLÍTICA INDUSTRIAL NUNCA DESAPARECEU, MAS EXPLODIU A PARTIR DA COVID”
Em entrevista à EXAME, o académico explica em que situações a política industrial pode funcionar
Como definiria política industrial?
Podemos ter uma definição precisa: ação intencional do Estado cujo objetivo é mudar a composição da atividade económica. Tem objetivos e especificidade. Muda o rumo da economia para um caminho que não se concretizaria sem essa atuação. Pode ser mais setorial ou mais transversal.
Os céticos tendem a concentrar-se no protecionismo.
Há política industrial que não serve para proteger a economia da forma como as pessoas normalmente falam, com tarifas, por exemplo. investigação e Desenvolvimento (i&d) chegou a ser controversa, mas já não o é. isso é política industrial, tal como políticas de dinamização das exportações.
É comum dizer que a política industrial estava morta, mas os países nunca deixaram de a concretizar, certo?
Tem havido um crescimento da política industrial desde a crise financeira, especialmente nas economias mais ricas. Tarifas aduaneiras deixaram de ser admissíveis, outras iniciativas menos controversas passaram a ser mais usadas, subsídios, créditos, i&d. Os Estados Unidos da américa sempre tiveram a Darpa [agência de desenvolvimento tecnológico integrada no Departamento de Defesa]. Na Coreia do Sul, nunca deixou de ser relevante. Só parámos de a estudar, porque talvez tivéssemos pensado que era pouco importante.
Parece ter acontecido algo após a pandemia, com um maior interesse por países e regiões. Isso é observável?
São duas ideias que podemos conciliar: nunca desapareceu, mas explodiu a partir da Covid-19, e de formas que não podemos ignorar. Quando os mercados não estão a funcionar, temos uma justificação para a política industrial. Com a pandemia, a preocupação com as falhas de mercado tornou-se flagrante, surgindo também preocupações estratégicas acerca de cadeias de abastecimento: se um país “cai”, toda a indústria que depende dele não opera. Passou a haver vontade política para fazer alguma coisa. as alterações climáticas são um bom exemplo: a maioria não acredita que elas possam ser combatidas com os mercados.
Joe Biden conseguiu avançar com duas grandes iniciativas legislativas [CHIPS Act e o Inflation Reduction Act]. Quão diferentes são face ao passado recente?
São radicalmente diferentes. Joe biden teve a vontade política – e havia também vontade bipartidária – de avançar com estas políticas. Não quis seguir a versão tradicional neoclássica e neoliberal. Junte-se a isso a procura do setor privado e foi possível passar legislação muito ambiciosa. Houve um alinhamento: mudanças ideológicas, políticas e um mundo pós-covid.
E a economia norte-americana reage rapidamente.
O investimento é executado muito depressa. O facto de os EUA cortarem com a sua tradição abriu margem para mais política industrial em todo o mundo.
Como se compara isso com o que a Europa tem feito?
São realidades muito diferentes. as instituições europeias não permitem fazer aquilo que os EUA fizeram. algo como o CHIPS [legislação que incentiva a produção de semicondutores nos EUA] não poderia ser acomodado na regulação europeia. até há ambições semelhantes, com ênfase em i&d, mas existem constrangimentos institucionais, nomeadamente nas ajudas de Estado.
A literatura diz que a política industrial funciona. O difícil é fazê-la bem?
Sim, é a parte crítica. Existem muitas experiências. Fazer afirmações abrangentes que digam que é “boa” ou “má” pode ser difícil de verificar empiricamente. Não significa que estejam a ser usadas as melhores práticas ou que essas medidas tenham o melhor retorno social. Mas é seguro dizer que provavelmente, na maioria, as tarifas aduaneiras são negativas. aquelas que Donald Trump introduziu não funcionaram bem, provocaram retaliações de outros países e tiveram custos para consumidores em todo o mundo. O apoio ao i&d parece ser socialmente valioso e atrai investimento privado.
Há características específicas de quando funciona bem ou mal?
Não há muitos trabalhos sobre isso. Quando funciona, observa-se um alinhamento entre o público e o privado, com uma implementação algo burocrática feita por pessoas politicamente independentes, com conhecimento institucional e dos setores. Nunca será despolitizada, mas deve ser feita com objetivos económicos, para colmatar falhas de mercado. No caso do Sudeste asiático, as empresas tinham de ser capazes de competir no mercado internacional.
Estudou o caso sul-coreano. Pode explicar-nos porque funcionou?
institucionalmente, tinham o suficiente para funcionar. Havia um incentivo existencial, a luta pela sobrevivência, tanto do lado do Estado como do setor privado. O Estado foi muito rigoroso na forma como implementou as medidas. Tinham como alvo coisas em que achavam que podiam ser bons e fizeram muitas mudanças, mas também houve coisas em que falharam.
Normalmente discute-se muito mais a chamada “escolha de vencedores” do que deixar os derrotados morrer. Devemos ser mais abrangentes nas apostas ou mais centrados?
É uma boa pergunta. as pessoas tendem a adotar uma estratégia de portefólio. Se é mais estreito ou mais abrangente, isso já não sei. Mas é verdade que também aprendemos com os falhanços. Se estamos a atuar em certas atividades é porque há risco. Um risco que o setor privado não quer assumir. bons vencedores suplantam a existência de derrotados. a Tesla, por exemplo, funcionou muito bem. Foi financiada por empréstimos do Departamento de Energia. Veja-se o valor de mercado e o retorno social que trouxe e que, esperemos, se traduza numa economia mais verde.
Já mencionou as alterações climáticas. Para as combater, há alternativa a uma política industrial mais musculada?
acho que não. as medidas consensuais – impostos sobre carbono, atribuir um preço às emissões – são difíceis de executar. Será preciso ter métodos mistos, com política industrial. Vivemos num mundo imperfeito, não podemos ter políticas perfeitas.
Falou há pouco da ameaça existencial sentida na Coreia do Sul. Hoje, além do aquecimento global, temos um mundo fragmentado no pós-guerra da Ucrânia como outro risco de sobrevivência.
Sim. Há forças nessas direções. Com a globalização, havia uma visão mais unificada do mundo. Eu desconfio quando as pessoas apresentam respostas únicas, especialmente quando essa resposta é apenas “comércio livre”.
Esperemos, no entanto, que continue a haver coordenação entre os países.
Quando pensamos em concorrer com a China, estamos irremediavelmente atrasados? a China constrói um aeroporto em dois anos e nós dizemos que não podemos fazer nada.
Os dois argumentos eram “não faças nada” e, ao mesmo tempo, “tudo o que estás a fazer é um fracasso”. a China apanhou-nos impreparados nos semicondutores e estão também a produzir carros elétricos em massa, não deixando apenas as forças de mercado funcionar. Tornaram-se líderes em microchips debaixo do nosso nariz, e nós não reagimos?
A revolução de credibilidade também chegou a esta área da investigação económica?
Há cerca de duas décadas, a economia começou a basear-se mais em dados e em análises empíricas. Pensar mais em causalidade e em avaliação de políticas. Observamos isso no estudo de política orçamental, impostos, mercado de trabalho e desigualdade. Na política industrial é mais difícil fazer estudos randomizados, mas estão a ser encontradas formas mais científicas de a estudar e estamos a ultrapassar velhos consensos, muitos deles anedóticos. Que efeitos se observam na produtividade? E nos preços? O emprego está a crescer? a economia é muito lenta e ideológica. Passei bastante tempo a falar com pessoas do FMI e do banco Mundial, e elas são muito pragmáticas e estão recetivas. Se me imaginasse a dizer isto há dez anos, pareceria louco, mas o mundo está a mudar.
“A China tornou-se líder em microchips debaixo do nosso nariz, e nós não reagimos?”