CRAVEIRAL FARMHOUSE BY BELONG STAYING & FEELING
Sabe aquele lugar-comum que diz que os lugares são as pessoas? Chegamos a 2019 e, enquanto continuamos a ser bombardeados com imagens esteticamente perfeitas e geométricas de lugares-demasiado-bonitos-para-serem-reais, percebemos que há clichés que fazem mesmo sentido – talvez tenha sido justamente por isso que se tornaram clichés. O Craveiral, um turismo de natureza que abriu o ano passado no Sudoeste Alentejano, é um lugar demasiado bonito para ser real, o que pode soar um pouco contraditório tendo em conta o que acabámos de escrever não fosse o facto de dever pelo menos uma grande parte da sua energia – uma energia do caraças em linguagem pouco digna mas mais que verdadeira – precisamente às pessoas.
Num ato de loucura, vamos então começar um texto sobre um lugar a falar de pessoas. Da Marta, que no Natal ofereceu a toda a família vouchers para conhecerem o Craveiral e que gosta tanto de ali trabalhar que não se cansa de o dizer e de o mostrar a quem com ela se cruza; da Paula, que parece ter o dom da ubiquidade e tanto nos está a oferecer um café como a dar instruções ao mestre de obras; da Maria João, que aceitou o desafio de deixar a sua carreira na área do design gráfico para assumir o leme da cozinha, e que no final da noite se junta a nós para um copo de vinho e dois dedos de conversa logo depois de deixar a arrefecer o bolo de frutos vermelhos para o pequeno-almoço do dia seguinte; ou do Tiago, o mestre de cerimónias que, para além de não falhar uma final da Eurovisão desde há 14 anos, também parece colecionar boa-disposição tal é a facilidade com que põe a rir todos os que o rodeiam.
Num primeiro momento, pensamos que reunir estas pessoas num mesmo local só pode ter sido um tremendo golpe de sorte. Mas depois conhecemos o Pedro, o Luís e o João e percebemos que nada aqui é fruto do acaso. Pedro Franca Pinto, Luís Capinha e João Canilho são os sócios por trás do projeto Craveiral – muito resumidamente, a história começou com Pedro, que em 2010 comprou um antigo campo de cravos com o intuito de transformá-lo num projeto que servisse de legado emocional aos seus dois filhos, mas só teve a sua devida concretização com a entrada de João e Luís na equação –, três homens tão diferentes entre si quanto igualmente exímios na arte de fazer com que todos os hóspedes sintam que chegaram a uma casa onde não precisam de parecer, mas apenas de ser e estar, o que pode aparentar ser pouco mas é tudo. “Costumo dizer que o Craveiral é um espaço de liberdade, liberdade no sentido de respeitar a liberdade individual de cada um”, diz Pedro Franca Pinto, advogado de profissão e homem de paixões assolapadas, um romântico com uma alegria pueril sempre que fala de algo em que acredita verdadeiramente – e isso acontece com muita frequência. No Craveiral, há todo o espaço do mundo para as emoções à flor da pele de Pedro, mas também para a expansividade, descontração e sentido prático de Luís, formado em design gráfico e dono de um bom gosto irrepreensível, e para a argúcia e serenidade de João, que depois de muitos anos a trabalhar no setor das telecomunicações direcionou toda a sua sensibilidade e conhecimento do mundo para o turismo (ainda antes do Craveiral, João e Luís abriram a Casa Amora, uma casa de hóspedes no bairro lisboeta das Amoreiras).
Apesar de extraordinariamente diferentes entre si, Pedro, João e Luís não precisam de fazer qualquer esforço para alcançar consensos. Regressando novamente ao início do texto: é que se os lugares são pessoas, o Craveiral reflete tudo aquilo em que os três sócios acreditam, a começar pelo profundo respeito pelo sítio onde decidiram fazer obra. Na localidade de São Teotónio, a poucos quilómetros das praias da Zambujeira do Mar e do Carvalhal, o Craveiral estende-se por nove hectares de terreno que, tal como muitas das paisagens alentejanas, nos dá uma imediata sensação de infinitude. À natureza, deu-se a permissão de crescer selvagem: a horta e as árvores de fruto que foram plantadas, incluindo 5 mil pés de medro
nheiro, hão de crescer, é verdade, mas sempre cercadas pelas ervas e plantas nativas, nunca por relva (à exceção do campo de jogos e do picadeiro) ou árvores que não pertencem ao ecossistema da região. “Queremos que a natureza tome conta de tudo”, resume Capinha.
A área construída ocupa apenas 4% da totalidade do terreno e é também ela condizente com o imaginário alentejano. As 38 casas brancas e rasteiras, de diferentes tipologias, repartem-se por quatro núcleos distintos, unidos por longos passadiços de madeira que convidam a passeios a pé, de bicicleta (as bicicletas estão espalhadas por toda a propriedade e podem ser usadas livremente pelos hóspedes) ou de minitrator, os amorosos meios de locomoção que ajudam a fazer do riso das crianças uma das principais bandas sonoras do Craveiral – para quem esse é um problema, há um núcleo de casas apenas para adultos que tem até uma piscina privativa. A restante área construída inclui o edifício principal, onde são servidas todas as refeições e está instalada a receção, o centro de interpretação (um espaço multiusos recém-inaugurado onde terão lugar workshops de macramé e ioga mas também casamentos) e as quatro piscinas, incluindo um edifício com piscina interior e aquecida, banho turco e sauna.
O Craveiral são as pessoas, já o dissemos, mas também são os animais. O casal de burros Cravo e Ferradura e a sua cria Cravinho; o Medronho, um cada vez mais sociável porco vietnamita; a cabra-anã Canela e a sua filhota Hortelã (que a GQ ajudou a batizar); um galo e uma galinha de seu nome Rosmaninho e Romã; o amistoso cavalo lusitano Quinoa; os gatos vadios que por ali apareceram e que foram batizados de Malagueta e Pimenta; ou a Pica, a cadelinha de Pedro Franca Pinto que não é residente permanente, mas também faz parte de uma família que não para de crescer. “O Craveiral não são paredes, é uma experiência”, diz Pedro. E depois temos a oportunidade de aprender a andar de cavalo com a Quinoa, de ir às praias mais próximas de jipe, descobrindo um Alentejo que desconhecíamos, de beber um medronho no alpendre enquanto conversamos noite dentro, ou de fazer o nosso próprio pão e pizas com a ajuda do sorridente e solícito Jessy. E percebemos que a frase de Pedro não podia ser mais verdadeira.
Para os três sócios, este projeto só faz sentido se se abrir à comunidade que o rodeia, seja através da valorização dos produtos locais – como os enchidos do Evangelista e os queijos da Queijaria do Mercado Municipal de Odemira, que petiscámos num fim de tarde molengão, ou o vinho Vicentino que nos acompanhou em todas as refeições – como apostando em iniciativas inclusivas. É o caso da carta de pizas biológicas que em breve resultará da parceria com a pizaria ln Bocca al Lupo e a associação Vila com Vida, cujo objetivo é criar oportunidades de trabalho dentro do Craveiral para jovens com autismo, síndrome de Asperger e síndrome de Down. Com exceção das pizas, Maria João Leite é a responsável por outra das experiências inolvidáveis do Craveiral: a comida. Seguindo uma filosofia farm to table e apostando preferencialmente em produtos sazonais e regionais e, no futuro, provenientes da horta e do pomar da propriedade, é ela a fada madrinha por trás de pratos como o pão alentejano recheado, o polvo com batata-doce ou o lombinho de porco preto com puré de castanha – e até dos bolos e das panquecas extrafofas que completam o excelente pequeno-almoço.
O texto já vai longo, mas ainda não lhe dissemos que todas as 38 casas estão equipadas com kitchenette ou cozinha equipada, amenities biológicos, terraço com pérgola e recuperador de calor a lenha (à exceção dos estúdios), e que têm em comum uma decoração despretensiosa e quase toda made in Portugal, com mobiliário da WeWood e DAM, peças de marcas como a Costa Nova, a Meireles e a Exporlux, quadros da autoria de Bruno Castro Santos e apontamentos decorativos feitos por artesãos locais. Nem mencionámos que a horta é regada com água do furo, que as águas das chuvas e das lavagens são reutilizadas e que todos os excedentes da horta e do restaurante são compostados. Na realidade, há tanto para dizer que o mais difícil é terminar um texto sobre o Craveiral. Até porque o Craveiral está também em constante mutação. E é isso que faz com que seja um caso realmente especial: ser um organismo vivo com uma alma onde cabe o mundo.