GQ (Portugal)

AS ÚLTIMAS TRÊS MÚSICAS DE UM CONCERTO

- FICÇÕES MAIS OU MENOS DIEGO ARMÉS

Vínhamos da pastelaria para a escola, faz agora 25 anos, quando eu disse para o Filipe “então, morreu o gajo dos Nirvana?” e ele respondeu-me “pois foi, o Kurt Cobain matou-se”. Era uma época de Pepsis Max e de manelitos, uma espécie de biscoitos espalmados recheados com creme de ovos e amêndoas. O Filipe era um rapaz louro e bonito que fazia bodyboard e por quem as raparigas se apaixonava­m. Foi ele quem me gravou a cassete com Grave Dancers Union, dos Soul Asylum, e, como sobrava fita, ainda lhe acrescento­u o Cereal Killer dos inacreditá­veis Green Jellÿ, porque, segundo o Filipe, os Soul Asylum eram “pá, um bocado lamechas”. E eram mesmo. Aproveitou a nesga que sobrava da cassete para me dar a conhecer os Stone Temple Pilots, de quem gravou as três melhores canções do Core: a Plush, a Dead and Bloated e a Creep. Os Pilots viriam a tornar-se uma das minhas bandas favoritas durante os 10 anos seguintes.

Nunca percebi porque é que não fui capaz de dizer, naquela conversa com o Filipe, o nome, Kurt Cobain, do homem que mudou a minha vida. Ele começou a mudá-la não quando escreveu a Smells Like Teen Spirit, nem quando disparou a caçadeira que tinha enfiado na boca. Ele mudou a minha vida quando ouvi a notícia da sua morte na rádio, era fim de semana e eu estava a jogar Elifoot. Nesse tempo em que eu tinha uns 14 anos simples, tudo o que eu queria da vida era jogar futebol. Depois da notícia, fiquei essa tarde inteira a ouvir a cassete do Nevermind.

Nunca na vida eu tinha querido ser músico, mas tive a felicidade de desenvolve­r uma obsessão pela figura de Cobain – “pelo Kurt”, como eu lhe chamava –, de tal

modo que duvido que alguém no mundo o tenha conhecido melhor do que eu. Não falo dos detalhes, já nem tenho a certeza se nasceu a 20 ou a 22 de fevereiro de 1967, refiro-me a saber-lhe a essência, o que pensava e sentia, acho que li todos os seus textos, ouvi todas as suas canções e todas as bandas que ele terá confessado gostar nas entrevista­s que dava e que eu, naturalmen­te, tratei de ler em várias línguas. E então a minha vida foi mudando porque, se o Kurt Cobain se matou infeliz, o mínimo que eu podia fazer era canções como as dele. Nunca consegui, mas tentei.

Nos anos que se seguiram, andei no liceu. Fazia, com os meus amigos, tops das melhores canções dos Nirvana, que iam variando. Acredito que a última e definitiva melhor canção dos Nirvana tenha sido a Milk It, mas, agora que ouço o Nevermind, fico com dúvidas. Por falar em Nevermind,

A MINHA VIDA FOI MUDANDO PORQUE, SEO KURT COBAIN SE MATOU INFELIZ, O MÍNIMO QUE EU PODIA FAZER ERA CANÇÕES COMO AS DELE.

quando finalmente comprei o álbum em CD, ouvi talvez umas 200 vezes de seguida a entrada da Smells Like Teen Spirit, aquele tan-c’tan. Foi por essa altura que comprei o Live Tonight – Sold Out, uma cassete VHS que resistiu às centenas de vezes que foi vista e rebobinada, às dezenas de empréstimo­s e devoluções, às horas e horas de pura contemplaç­ão até lhe saber todos os detalhes.

O tempo, que nessas idades passa muitíssimo mais devagar, tornou tudo claro: não era o futebol aquilo que eu procurava na vida, era a música. Formei a minha primeira banda estava eu no 11.º ano. O meu plano de tocar guitarra ficara bem definido na primavera anterior e trabalhei durante o verão dos meus 15 anos para comprar um instrument­o. Comprei a guitarra estávamos ainda em setembro e, como nas terras pequenas as notícias correm depressa, um rapaz com quem fiz a escola primária veio logo falar comigo, perguntar-me se eu queria ser da banda dele, que tinha ouvido dizer que eu tinha guitarra e amp, e eu disse-lhe que, sim, claro, que só precisava de aprender a tocar. Ele prontifico­u-se a ensinar-me, fez o melhor que pôde, e nove meses mais tarde, demos o nosso primeiro concerto, no qual tocámos 17 músicas, 14 delas originais, todas elas escritas por mim, nenhuma delas ao nível das do Kurt.

Seguiram-se muitos anos de músicas e de bandas, de concertos e de ensaios, de amigos e de guitarras, até que um dia, antes de mais um concerto, dei por mim a pensar, uma vez mais, por que raio estava eu naquele estado de nervos antes de entrar em palco. Esta sensação não era apenas frequente, era o que me acontecia sempre. Teria sido tão mais fácil não me ter metido naquilo. Acabei por perceber que, afinal, não era a música que eu procurava, nem todas as suas atividades, nem os nervos, nem as esperas – o tempo que se passa à espera, quando se faz música, é assinaláve­l. Aquilo que eu procurava eram aquelas últimas três músicas de cada concerto, quando o fim já está à vista, o suor escorre pela testa e pelas costas, o público já é nosso e o momento é de pura fruição. Tudo o resto era esforço e sacrifício. Mas eu só descobri isso porque o gajo dos Nirvana, cuja melhor canção é definitiva­mente a Lithium, se matou há 25 anos.

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