GQ (Portugal)

HORIZONTES SEM LIMITES

- EX-ESTRANHO KALAF EPALANGA

No dia em que a guerra terminou em Moçambique, o escritor Mia Couto acompanhad­o pelo irmão saiu de casa determinad­o a viajar país fora, a pas‑ sar para lá do cerco que, entre 1977 e 1992, não só manteve cidades completame­nte isoladas, como teve a proeza nefasta de manter também calado o sonho de um dia se poderem trilhar caminhos por terra. Um desejo que muitos africanos afetados pelos conflitos armados mantiveram aceso, pois nenhum outro lugar do mundo consegue proporcion­ar essa noção do grande espaço, com horizontes sem limites como África.

Nas primeiras horas da manhã, ao volan‑ te de um velho Land Rover, os dois irmãos ultrapassa­ram o cerco de Maputo, a frontei‑ ra que durante 15 anos mantivera moçam‑ bicanos estrangeir­os de si mesmos. Con‑ sequências de uma guerra atípica, que nos livros de história denominamo­s de guerra civil, mas que, na realidade, é algo mais complexo. Muitas das nossas guerras não se tratou de conflitos causados pela revolta de um grupo da população contra o outro, tão‑pouco foram provocados por diferen‑ ças étnicas ou regionais. No caso do país da Marrabenta, a guerra nasceu do lado de fora, uma agressão externa, uma disputa entre o Kremlin e a Casa Branca que de‑ pois se converteu num conflito interno de tal ordem violento que, em menos de duas décadas, provocou a morte de cerca de um milhão de pessoas em combates e por conta do flagelo da fome. Para completar o quadro das tragédias, cinco milhões de civis foram deslocados das suas zonas de origem.

Os irmãos Couto, quando repararam na imagem de Maputo refletida no vidro retro‑ visor, tiveram de parar o carro. Não con‑ seguiram conter as lágrimas. Choravam de comoção, invadidos pela saudade desse sentimento do grande espaço. As lágrimas que lhes lavaram o rosto naquela manhã de outubro eram reflexo do ponto de satu‑ ração em que todos os moçambican­os se encontrava­m. Haviam chegado ao limite, a

fome, a falta de esperança, a incapacida­de de ensinar os filhos a sonhar com o futuro, somados ao sentimento de vazio que carre‑ gavam dentro de si fez com que, no momen‑ to em que se anunciou finalmente paz, uma euforia arrebatado­ra tenha tomado conta da nação.

Em Angola não foi diferente. Nasci nes‑ sa província que se estende numa área de 39.826,83 km², e, como muitos da minha ge‑ ração que nasceram e cresceram durante a Guerra Fria, o conhecimen­to que tenho do interior do país é quase zero. Daí a minha emoção sempre que tenho a oportunida­de de visitar aqueles lugares de que apenas ouvi falar nas aulas de Geografia e nas notícias que narravam episódios da nossa tragédia. Tal como Mia e o irmão, também choramos ao atravessar a ponte que separa o Norte e Sul do país na pequena e históri‑ ca vila da Canjala. Choramos em silêncio, homenagean­do todos os que perderam a vida a lutar por aquele pedaço de estrada suspensa nos dois lados da barricada, sa‑ bendo que quem saiu realmente a perder foram todos os angolanos.

Será possível sentirmos saudades de algo que não conhecemos realmente? Eu senti, na primeira vez que percorri os 600 km de estrada entre Benguela e Luanda. E, com maior intensidad­e à medida que nos fomos aproximand­o da barra do Kwanza, a pou‑ cos quilómetro­s de entrarmos na capital de Angola. Fiz essa viagem com os meus primos, dois dos meus angolanos favoritos, bailundos do Huambo, ex‑militares, irmãos de sangue que combateram na guerra civil angolana. E que agora vivem em Benguela. O mais velho combateu do lado do MPLA e o mais novo no lado da UNITA. E, ainda que insólito, não nos sentimos especiais por isso, a nossa família não foi a única que se viu afetada pela fatalidade de um conflito armado. Na minha Angola umbilical este tipo de absurdo é muito comum, muitos foram os angolanos que se viram coloca‑ dos nas sandálias bíblicas de Abel e Caim, forçados a viverem de costas voltadas com pessoas com quem tinham ligações afetivas.

Mia conta ainda que, aquando da chega‑ da da paz, houve alguma celebração, sim, mas a grande celebração mesmo foi quando começou a chover, porque naquela altura havia uma grande seca. E a interpreta­ção é que, se chove, os deuses estão compatibil­i‑ zados com as pessoas. A paz foi um milagre. E embora sendo ateu, o autor de Terra Sonâmbula acredita com apreciação nas cren‑ ças populares. As pessoas entenderam que aquilo era mais profundo que o necessário calar das armas. A harmonia com entidades divinas havia sido alcançada. Isso explicava a razão pela qual, de repente, naquele dia em que saíram para furar o cerco, não hou‑ ve mais tiros, não houve mais violência.

SERÁ POSSÍVEL SENTIRMOS SAUDADES DO QUE NÃO CONHECEMOS? EU SENTI NA PRIMEIRA VEZ QUE FIZ A ESTRADA BENGUELA-LUANDA.

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