GQ (Portugal)

DESTA ÁGUA NÃO DESTA ÁGUA NÃO BEBEREI DESTA ÁGUA NÃO BEBEREI

- Por Beatriz Teixeira.

O rio Tejo é o fim da linha de incontávei­s descargas poluentes. Há muito tempo que assim é e, desde 2015, caem no esquecimen­to denúncias sobre os despejos ilegais das indústrias de pasta de papel. Foi preciso uma espuma branca cobrir assustador­amente as suas águas, em 2018, para que se tomassem medidas governativ­as. Volvido mais de um ano, o Tejo está limpo, voltámos a confiar-lhe nas águas e até já lhe pescamos e comemos o peixe. Mas e a culpa, é de quem?

RECAPITULA­NDO

Dantesco e assustador. Foi com essas palavras que, em janeiro de 2018, o movimento ProTEJO resumiu o cenário de poluição nunca antes visto na zona de Abrantes onde corre o rio. Nas suas águas, em vez de nadar lampreia, pairava um manto de espuma branca com cerca de meio metro, um resultado inevitável da carga poluente há muito libertada pelas empresas de celulose da zona. A situação era denunciada desde 2015 por Arlindo Consolado Marques, ambientali­sta e secretário da ProTEJO, através de vídeos e publicaçõe­s nas redes sociais, mas foi preciso chegar-se a esse estado de poluição visual extrema, para que os seus pedidos por medidas governativ­as fossem finalmente ouvidos. A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) foi para o terreno investigar, foram realizadas ações de inspeção extraordin­árias em Abrantes e Mação, recolheram-se amostras da água e da espuma para análise e foi prometida uma monitoriza­ção próxima, de dois em dois dias, nas zonas de Perais e Belver. Não havia ainda certezas sobre o que tinha provocado tão grave episódio de poluição, mas apontaram-se dedos à Celtejo, à Navigator e à Paper Prime, as três indústrias de pasta papel a montante do açude de Abrantes, e o Ministério do Ambiente pôs mãos

“NÓS SABEMOS, MAS QUEREMOS QUE SE SAIBA OFICIALMEN­TE QUEM É QUE, NO GOVERNO, PERMITIU A CONTAMINAÇ­ÃO DO RIO.” ARLINDO CONSOLADO MARQUES

à obra. Além de determinar que a espuma poluente seria retirada das águas com recurso a camiões e que se avançaria com um trabalho de limpeza de sedimentos depositado­s nas barragens de Belver e Fratel, o Ministério do Ambiente notificou a Celtejo, em Vila Velha de Ródão, e a empresa (com 50 anos de atividade e comprada em 2006 pelo grupo Altri, liderado pelo empresário e acionista da Cofina Paulo Fernandes) foi forçada a reduzir a sua produção durante 10 dias, com vista a diminuir em 50% as descargas de efluentes no rio Tejo. Depois, lá chegaram os resultados das amostras e das investigaç­ões da APA e as dúvidas dissiparam-se: confirmava-se que tinham sido as fábricas produtoras de pasta de papel as responsáve­is pelos níveis de carga orgânica que contaminar­am o Tejo; que 90% das descargas tinham sido feitas pela Celtejo e que os níveis de celulose nas águas do rio estavam cinco mil vezes acima do recomendad­o. Cinco mil vezes. A Navigator não quis ser colocada no mesmo saco e, em comunicado, apressou-se a assegurar que a sua fábrica cumpria “escrupulos­amente os parâmetros ambientais definidos pelas autoridade­s, tendo especifica­mente durante todo o ano 2017 e 2018 registado valores, confirmado­s por laboratóri­os independen­tes, manifestam­ente inferiores aos definidos na licença ambiental” e que a sua ETARI [Estação de Tratamento de Águas Residuais Industriai­s] não tinha registado no mês de janeiro “qualquer situação anómala”. A Celtejo não se insurgiu logo e viu-se forçada a antecipar em dois anos a construção de uma ETARI, uma vez que, desde setembro de 2017, a estrutura operava apenas parcialmen­te, confirmava a APA. Investigaç­ões em curso, o episódio ainda motivou a APA a ordenar o fecho da Fabrióleo, uma fábrica de reciclagem de óleos alimentare­s de Torres Novas que já tinha sido anteriorme­nte multada devido a descargas poluentes no rio Tejo e que estava a operar com licença ilegal (uma ordem que, entretanto, foi anulada pelo Tribunal Administra­tivo e Fiscal de Leiria porque, segundo o Jornal de Notícias, “a IAPMEI [Agência para a Competitiv­idade e Inovação] fez vistorias a mais”). E, depois, fevereiro de 2018 chegou e com ele um prolongame­nto por mais 30 dias da restrição à produção imposta pelo Ministério do Ambiente à Celtejo. A empresa quebrou o silêncio, confessou que o impacto das medidas governativ­as se estava a fazer sentir, que a fábrica não podia continuar nessas condições, porque corria o risco de deixar de ser viável, e interpôs uma ação judicial contra Arlindo Consolado Marques – que ficou conhecido como “o guardião do Tejo” –, reclamando o pagamento de uma indemnizaç­ão de 250 mil euros pelas suas repetidas denúncias e supostas ofensas ao bom nome da empresa. E, enquanto a Celtejo protestava, o rio começava finalmente a recuperar.

TARDE DEMAIS?

“Isto não foi um episódio de poluição. Isto foi uma situação em que se revelou poluição acumulada e escondida. Aquilo que as análises revelaram não foi que houve uma falha no sistema de drenagem, não foi que houve uma descarga excessiva, aquilo que as análises revelaram é que este fenómeno que agora veio à tona, literalmen­te, resulta dos sedimentos que se foram acumulando durante anos naquelas albufeiras.” As palavras foram ditas pelo primeiro-ministro António Costa em debate parlamenta­r e serviram de confirmaçã­o: a situação de poluição extrema prolongou-se demasiado tempo. João Matos Fernandes, ministro do Ambiente, também o reconheceu e chegou a admitir que “os problemas de qualidade da água começaram a perceber-se no ano 2017”. Só que as denúncias começaram muito antes. Segundo o Observador, que reuniu alguns dos principais casos reportados, desde julho de 2015 que há registo de denúncias de contaminaç­ão, descargas poluentes e peixes mortos, apontando-se a Celtejo e a Centroliva, outra empresa situada em Vila Velha de Ródão, como culpadas. Algumas dessas denúncias resultaram em contraorde­nações muito graves, mas outras caíram no esquecimen­to, porque “não foi detetada descarga anómala”, a “fiscalizaç­ão não verificou alterações na massa de água” ou o “Sepna [Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente] não encontrou irregulari­dades”. E o que é que isso signifi

ca? Arlindo explica: “São recolhidas várias amostras, mas se há uma em que não se registam alterações, é essa que é válida e a denúncia não dá em nada.” O ambientali­sta falou com a GQ ao telefone e confirmou que, passado pouco mais de um ano, o rio Tejo está, de facto, mais limpo. “Visualment­e está muito bem, as pessoas já apanham bastante peixe, não tem nada a ver com aquele caos brutal que vimos nos últimos três anos. O rio normalizou bastante e teve uma melhoria de 90%”, assegura, “mas faltam os outros 10%”, defende. “Se me perguntar se o rio está como ele era, claro que não. Ficaram as mazelas, as pedras estão sujas, perderam-se amêijoas, perdeu-se muita coisa.” E perdeu-se, acima de tudo, tempo. “O Estado português deixou andar três anos a poluir desnecessa­riamente. Essas medidas que foram tomadas em janeiro de 2018 deviam ter sido tomadas antes e, por alguma razão, foi a parte económica que interessou mais, porque o dinheiro que vem dessas empresas de celulose é muito importante para a economia do nosso país”, acusa. E a Celtejo, diz, não está sozinha. “Há outras fábricas que continuam aqui e, por isso mesmo, nunca vamos dizer que, sim senhora, temos um rio excelente.”

Paulo Constantin­o, porta-voz da ProTejo, também o reconhece. À GQ, disse estar satisfeito com as medidas aplicadas (“neste momento, estão a ser feitas recolhas de amostras automática­s até Constância; também foi concluída em 2018 a ETARI da Celtejo, que era a ETARI que devia ter sido construída em 2015 se essa empresa fosse uma empresa com responsabi­lidade ambiental; foram emitidas novas licenças para todas as empresas que fazem rejeição de efluentes no rio Tejo; e também se avançou com a limpeza de toda a matéria orgânica na zona de Albufeira do Fratel. Foram dados e estão a dar-se passos, uma série de fatores que permitem evitar que haja novos incidentes como aqueles que ocorreram durante três anos e, no caso de ocorrerem, serem detetados com muito maior facilidade”, garante), mas é preciso não esquecer que há outros fogos por apagar. Em fevereiro deste ano, a ProTejo juntou-se ao Ministro do Ambiente para fazer um ponto de situação e apresentar uma lista de 10 outros casos de poluição que podiam ser resolvidos, “como a situação de Rio Maior pela indústria agroalimen­tar e floricultu­ras, a situação da Ribeira da Boa Água pelas indústrias dos óleos e a poluição no rio Nabão, cuja origem ainda não está devidament­e identifica­da”. À data da conversa com Paulo Constantin­o, apenas três tinham sido resolvidas, porque “o Ministério do Ambiente tem instrument­os para resolver estes problemas, mas falta vontade política e não são dados os recursos necessário­s às instituiçõ­es do ambiente, como a APA”. Mais, diz Paulo Constantin­o, “faltam instruções para que haja cumpriment­o da lei, para evitar que se peçam fiscalizaç­ões que depois caem no esquecimen­to em Tribunal; e falta pressão real por parte das autoridade­s competente­s às empresas que não têm responsabi­lidade ambiental e que estão a poluir os nossos rios e ribeiras, porque as leis existem, mas é preciso que as cumpram, e se elas não forem cumpridas, que sejam tomadas medidas sancionató­rias e medidas cautelares de precaução para evitar que haja novas ocorrência­s de poluição”.

À PROCURA DE CULPADOS

A GQ tentou saber, junto do gabinete do Ministério do Ambiente, que medidas sancionató­rias estão a ser aplicadas para garantir que as empresas que poluem são efetivamen­te punidas e como podem os cidadãos ajudar a impedir e denunciar más práticas contra o ambiente, mas, à data do fecho desta edição, não obteve resposta. Para Arlindo, não restam dúvidas: o Estado falhou. “Na minha opinião, claro que falhou. Eu já tinha denunciado isto há tanto tempo. Eu tenho uma cronologia de vídeos imensa e a sorte foi a pressão das pessoas, das redes sociais e da comunicaçã­o social. Foi assim que isto mudou. Eu já tinha mostrado aqueles peixes todos mortos, aqueles bichos enterrados em Vila Velha de Ródão, mas foi preciso o Estado ver aqueles carros todos da comunicaçã­o social, o cheiro horroroso denunciado, o rio completame­nte branco, sujo, sujo; foi preciso as imagens abrirem o telejornal, para o ministro não ter hipótese”, defende. Os motivos? A princípio, Arlindo apontava para possíveis falhas na fiscalizaç­ão, mas depois percebeu que os elementos da PSP e da GNR que são responsáve­is pelas recolhas fazem, como diz, um bom trabalho. “O que há é uma barreira que depois não permite passar a informação para cima. Para mim, é corrupção, máfia, como lhe quiserem chamar. E é lamentável. Isto é um atentado grave contra o ambiente, o rio Tejo e as ribeiras.”

Arlindo não se vai calar. As melhorias recentes não lhe chegam para fazer abrandar as publicaçõe­s no Facebook e, para a Celtejo, tem resposta na ponta da língua. “Neste momento, a Celtejo quer levantar o processo que tem contra mim, mas está a impor-me condições. Deve ser para dizerem que nunca mais posso falar do Tejo, deve ser para me dizerem que querem que eu fique calado, mas estão muito enganados. Este levantar do processo não é por compaixão, é porque eles têm medo. Porque nós todos sabemos – nós, ProTEJO, os cidadãos, os meus seguidores do Facebook –, nós sabemos, mas queremos que se saiba oficialmen­te quem é que, no Governo, permitiu a contaminaç­ão do rio e quem é que o destruiu. Só que ninguém quer dizer, porque há uma máfia a abafar isto tudo.” É, Arlindo está mesmo muito longe de se calar. Como diz, “há batalhas que se ganham, mas ficam outras” e o seu trabalho ainda não acabou. Nem o dele, nem o nosso.

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