GQ (Portugal)

DE SEATTLE A PORTUGAL

A passagem de Kurt Cobain pela vida foi fugaz, mas deixou marca um pouco por toda a parte e Portugal, como é óbvio, não foi exceção. Quisemos saber como foi a relação de alguns músicos nacionais com a música e a história meteórica de Kurt.

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ANA BACALHAU

A vocalista dos Deolinda, que também tem discos em nome próprio, revela-se uma grande admiradora dos Nirvana. Quando fala de Cobain, não se inibe e assume que os ouvia religiosam­ente, “cada palavra, acorde, inflexão da voz, efeito de guitarra”. Explica porquê: “Eram o meu grito de raiva, a minha libertação. Tudo aquilo que eu queria dizer ao mundo, eles diziam por mim.” Começou a ouvi-los da maneira como todos os adolescent­es começam a ouvir algo: alguém na escola fala da banda. “Na altura, não tinha

MTV em casa e foi na casa de uma amiga que os ouvi pela primeira vez. Os meus pais tinham-me dado uma aparelhage­m portátil e com o dinheiro que tinha poupado comprei o Nevermind.” Foi o primeiro CD que comprou e ainda hoje considera o seu preferido, mas só “por ter sido o primeiro que ouvi e que me levou para o seu universo”, já que tem elogios rasgados e justificaç­ões sérias para todos os outros. Por exemplo, sobre o

MTV Unplugged in New York, diz que é “‘O’ unplugged perfeito”.

Ana Bacalhau recorda-se de como soube da morte de Cobain. “Era dia de escola e, como sempre, quando acordava, ligava imediatame­nte o rádio. Ouço uma música dos Nirvana e, de repente, o locutor diz qualquer coisa como ‘uma música do malogrado cantor dos Nirvana, Kurt Cobain’.” Desejou que o locutor tivesse usado inadequada­mente o termo “malogrado”, mas afinal era mesmo verdade. A cantora aceita a ideia de que a morte prematura e trágica de Kurt tenha ajudado a solidifica­r e a propagar o culto em seu torno, mas acredita que é a sua música que prevalece. “Sei que muitos músicos que tiveram vidas difíceis e mortes antes do tempo acabam por ficar na memória coletiva tanto ou mais pela sua história, do que pela sua arte. Há um certo apelo do herói trágico a que as pessoas se apegam.” Quanto a Cobain, acha que “não é preciso conhecer a sua história para se gozar a sua obra, é nisto que acredito, essencialm­ente”.

MITÓ

A vocalista, que integra e integrou vários projetos musicais dentro da pop nacional (A Naifa, Señoritas), também conheceu Nirvana através de colegas de escola, os mesmos que lhe apresentar­am Sonic Youth, The Breeders, Siouxie, ou R.E.M., entre outros. Ouviu muito Nirvana,

“aliás como qualquer pessoa da minha idade”. “Nirvana passava a toda a hora nos discman, nos leitores de cassetes, nas rádios escolares, nas campanhas das Listas concorrent­es à Associação de Estudantes.” Conta que uma das suas maiores frustraçõe­s é não ter ido ao concerto de Cascais, a 8 de fevereiro de 1994, na sua única passagem por Portugal. Tem dificuldad­es em escolher um álbum favorito dos Nirvana, mas afirma que “o primeiro disco, Bleach, apesar de ser o mais desconheci­do, é dos que ouço mais”. “Foi o primeiro que ouvi. Os primeiros acordes de Blew ainda mexem comigo.” Considera o sucesso de Nevermind óbvio, fácil de perceber, e diz, acerca de In

Utero, que “é de todos o menos imediato, demorou mais a entrar no ouvido, mas, depois da morte de Cobain, foi o que ouvi mais”. “Parecia que já tinha sido gravado como uma despedida… foi de certa maneira ‘visionário’, muito à frente do seu tempo. Podia ter saído este ano”, concretiza.

Mitó não se recorda de ter recibo a notícia do suicídio de Kurt e acrescenta que essa falta de memória se estende a outros hiatos dos anos 90. Sobre as dimensões da obra e da persona de Cobain, diz que “a música dele foi maior que a sua história pessoal, ainda que trágica”, que enriqueceu a nossa cultura “e a cultura mundial”. “Acredito que a genialidad­e da sua obra seja independen­te das polémicas que foram alimentand­o os pasquins.”

JORGE CRUZ

O músico e compositor, frontman dos

Diabo na Cruz, conheceu os Nirvana “quando o grunge tomou conta do mainstream” com Smells Like Teen Spirit, primeiro hit single da banda, faixa de abertura do álbum Nevermind. Essa tomada de assalto do mainstream deixou Jorge Cruz de pé atrás, de tal modo que, só depois da morte de Cobain, começou a dedicar mais atenção aos Nirvana, essencialm­ente através de In Utero. “Depois, li um par de biografias, em particular Heavier Than Heaven do Charles Cross, e fui vendo documentár­ios que me suscitaram uma apreciação muito mais profunda da origem daquela música. Nessa altura, também eu já tinha um power-trio, e tentava fazer uma versão de rock emocional à portuguesa. Nirvana era um modelo incontorná­vel para esse formato.” Apesar de a descoberta séria dos Nirvana ter começado no último disco de originais, Cruz, “como bom classicist­a” que acaba por ser, escolhe o Nevermind como disco predileto, porque a “reunião de 12 canções indestrutí­veis é um feito que me impression­a acima dos outros”. Não obstante, diz-se fã de algumas faixas do menos célebre Incesticid­e, tais como Dive, Been a Son ou Aneurysm – “eram as minhas malhas”.

Recorda o dia de sol em que soube da notícia da morte de Cobain, alguns amigos seus a chorar no café onde costumava parar em Aveiro. “Era um big deal”, diz. “Dava para imaginar que em breve as T-shirts do Jim Morrison, do

Jimi Hendrix e da Janis Joplin seriam substituíd­as pelo mártir da nossa geração. Lembro-me de pensar nisso e de a ideia não me agradar muito. Acho que sentia que ele tinha feito batota.”

Jorge considera que a música de Cobain é “uma expressão muito direta da pessoa”. “Apesar da existir uma forte dimensão sarcástica na abordagem musical dele e um foco grande na noção de integridad­e em relação à carreira musical e mediática que foram disruptivo­s e altamente influentes na década de 90, sinto que aquilo que os Nirvana trouxeram de mais único foi um espaço de expressão emocional acerca da alienação e do tédio que a sociedade plastifica­da dos anos 80 deixou em montes de miúdos” – miúdos para quem o rock, naquela época,

“ainda se apresentav­a como uma maneira gloriosa e improvável de dar a volta por cima”.

RUI MAIA

Músico de X-Wife e de Mirror People, DJ em nome próprio, compositor,

Rui Maia diz que, provavelme­nte, terá conhecido os Nirvana através da MTV. “De toda a colheita de Seattle e da cena grunge, os Nirvana eram a única banda com quem me identifica­va verdadeira­mente. Ouvi-os muito na altura e acompanhei a saída do álbum Nevermind e de todos os posteriore­s até à morte do Kurt Cobain. Foram bastante influentes para mim, os Nirvana tinham uma grande influência punk rock, mas tinham uma boa noção pop, no sentido de que, o que eles faziam eram canções com uma estrutura simples, mas muito bem escritas com boas letras.” A pose anti-rock star de Cobain e companhia também lhe agradava muito e revela que, na altura, tocava bateria numa banda de garagem e que “Negative Creep ou In Bloom faziam parte do alinhament­o”. Não hesita quanto ao disco favorito: Nevermind. “É uma obra

-prima. Tem canções incríveis que resistem completame­nte ao teste do tempo. Para mim, nada neste disco hoje em dia soa datado.”

A notícia da morte de Kurt Cobain, soube-a através da MTV News. “O mundo entrou numa espécie de choque”, descreve. “O Kurt Cobain era um grande escritor de canções e um verdadeiro amante de música. Acho que a música dele vai continuar a ser ouvida para sempre. A meu ver, os Nirvana estão ali ao lado de gigantes tipo Bowie, Queen, Pink Floyd, Aretha Franklyn, Rolling Stones ou Jimi Hendrix.” Sente-se um sortudo por, como fã, “ter vivido e experienci­ado a história dele [Cobain].”

“HÁ UM CERTO APELO DO HERÓI TRÁGICO A QUE AS PESSOAS SE APEGAM.”

ANA BACALHAU

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Frances Bean.
O turbulento casal composto pol Courtney Love e Kurt Cobain com a filha bebé, Frances Bean.
 ??  ?? Este banco de jardim fica em Viretta Park, nas imediações da casa onde Kurt Cobain foi encontrado morto. Kurt tinha o hábito de pegar na guitarra e ir sentar-se no banco a tocar. Desde a sua morte que se tornou um ritual deixarem cervejas, dedicatóri­as e outras oferendas para o músico.
Este banco de jardim fica em Viretta Park, nas imediações da casa onde Kurt Cobain foi encontrado morto. Kurt tinha o hábito de pegar na guitarra e ir sentar-se no banco a tocar. Desde a sua morte que se tornou um ritual deixarem cervejas, dedicatóri­as e outras oferendas para o músico.
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€ 15,99, Bershka.
T-shirt, € 15,99, Bershka.

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