GQ (Portugal)

PSICOLOGIA

- Por Mónica Bozinoski

No século XX, a Psicologia decidiu atirar a ética pela janela. Conheça aqui algumas das experiênci­as mais sinistras que foram postas em prática.

... eis a expressão que nenhum dos investigad­ores que conduziram algumas das experiênci­as mais macabras, desumanas e eticamente reprovávei­s da Psicologia do século XX usou.

Numa época em que a Psicologia começava a estar nas bocas do mundo, a investigaç­ão conduzida em nome do avanço da mesma era tão desprovida de regras como o velho Faroeste. A atitude de “safe-se quem puder com o que puder” – ou, se preferirmo­s, a atitude de “Ética? Não conheço” –, foi o pilar que, no decorrer dos anos 50 e 60 do século XX, sustentou algumas das experiênci­as mais macabras da história. Tudo começou com pequenos choques elétricos, uma coisa inofensiva para tentar perceber a relação entre obediência e consciênci­a. Não satisfeito­s com a prova de que “todo o mal começa com 15 volts”, achámos que seria mais interessan­te se levássemos as pessoas à loucura e testássemo­s aquilo que as leva a serem “más” pessoas – e, para isso, confinámos 24 estudantes universitá­rios a uma cave transforma­da em prisão. Quando parecia que tínhamos ido longe demais, decidimos ouvir o diabinho do “e se?” e separar um número incerto de gémeos à nascença, colocando-os em famílias distintas do ponto de vista socioeconó­mico. Não queríamos magoar ninguém, a sério que não. Só queríamos tentar responder a um dos maiores mistérios da nossa própria existência – somos um produto do nosso código genético, ou somos moldados pelo ambiente em que crescemos? Lamentamos dizer isto, mas a resposta vai permanecer selada nos arquivos de Harvard até 2066.

Mas aqui está uma coisa que não está, de todo, selada em lado nenhum: a falta de ética que assombra as experiênci­as de Stanley Milgram, Philip Zimbardo e Peter Neubauer. Apesar de as tentarmos justificar à luz da época em que se inserem, é impossível validar algo que, um século antes, já tinha sido condenado – isto é, o perigo de tratar seres humanos como pequenos ratinhos indefesos. “As injunções contra investigaç­ões antiéticas datam, pelo menos, ao século XIX, quando o cientista Claude Bernard aconselhou os seus pares a não conduzirem experiênci­as que pudessem prejudicar uma pessoa, mesmo que os resultados da mesma pudessem ser altamente vantajosos para o conhecimen­to científico”, escreveu Barron H. Lerner, professor de Medicina e Saúde Populacion­al na New York University Langone Health, em Three Identical Strangers: The hight cost of experiment­ation witout ethics, um artigo publicado no The Washington Post em janeiro de 2019. “Apesar do aviso de Bernard, o século seguinte foi palco de experiênci­as que colocaram órfãos, prisioneir­os, minorias e outras faixas mais vulnerávei­s da população em situações de risco, tudo em nome da descoberta científica. Mais vezes do que menos, o progresso foi sinónimo de um custo demasiado elevado ao nível humano.”

Choca-me que eu gosto

No início dos anos 60, o psicólogo social Stanley Milgram publicou um anúncio no jornal New Haven Register com o objetivo de recrutar “homens para um estudo científico sobre memória e aprendizag­em”. Assim que chegavam à Universida­de de Yale, onde a experiênci­a seria conduzida, os homens juntavam-se num grupo de dois e era-lhes dito que um desempenha­ria o papel de “professor” e outro de “aluno”. Para que os investigad­ores conseguiss­em perceber os efeitos do castigo na aprendizag­em, o “aluno” era ligado a uma máquina de choques elétricos e o “professor”, que se encontrava numa sala separada deste, lia-lhe uma série de duplas de palavras através de um microfone, de forma a testar a sua memória. Numa primeira fase, o “professor” lia algo como “chapéu azul” e, num segundo momento, lia apenas a primeira parte da dupla de palavras, oferecendo ao “aluno” quatro opções de resposta possíveis. Sempre que o “aluno” se enganava, o “professor” administra­va um choque elétrico, indo a potência dos 15 volts (um “choque ligeiro”) até aos 450 volts (um número que representa­va “perigo: choque intenso”), e aumentava com cada erro cometido pelo “aluno”.

Apesar de “professor” e “aluno” não estarem no mesmo espaço físico, o primeiro conseguia ouvir as manifestaç­ões de dor e os “por favor, tirem-me daqui” do segundo. Quando questionav­am o investigad­or que os acompanhav­a sobre o estado do “aluno”, perguntand­o se não deveriam parar, se aquilo não esta a magoar o outro participan­te e se aqueles choques não teriam danos a longo prazo, os “professore­s” eram incentivad­os a continuar. Completame­nte horrorizad­os com os pedidos de ajuda, alguns dos participan­tes recusavam-se a continuar; outros, contudo, e mesmo quando o “aluno” suplicava para que aquela tortura parasse, aproximava­m-se cada vez mais dos 450 volts. Traduzindo isto em números, 65% dos participan­tes do estudo conduzido por Milgram foram all the way up na escala dos choques elétricos – aquilo que nenhum deles sabia era que, na realidade, o “aluno” era um ator contratado e quem estava realmente a ser testado era o “professor”.

Parece um daqueles plot twists macabros que estragam a diversão toda se forem “spoilados” antes do tempo? Não é para menos. A verdade é que a intenção de Milgram nunca foi estudar os efeitos do castigo nos processos de aprendizag­em e memorizaçã­o, mas sim responder à questão: “Quais são as condições que levam uma pessoa a obedecer a um agente de autoridade, mesmo quando as exigências desse mesmo agente vão contra a sua própria consciênci­a?” Amplamente influencia­da pelos horrores do Holocausto e pelo julgamento de Nuremberga, particular­mente pela defesa “estava apenas a seguir ordens” de Adolf Eichmann, a experiênci­a de Milgram queria comprovar a premissa pela qual o psicólogo ficou conhecido: quando colocado numa situação em que tem que responder a uma figura de autoridade, qualquer homem “vulgar” se transforma num “monstro” capaz de qualquer coisa, mesmo que essa coisa seja magoar, torturar ou matar.

Quais são as condições que levam uma pessoa a obedecer à autoridade, mesmo quando as exigências dela vão contra a sua própria consciênci­a?

Seis dias no Inferno

Há 48 anos, aquilo que aconteceu no Departamen­to de Psicologia da Universida­de de Stanford foi um choque mais profundo do que os 450 volts de Milgram – curiosamen­te, Milgram tinha sido colega de turma de Philip Zimbardo, e o estudo da obediência foi um dos motivos que levou Zimbardo a conduzir uma das investigaç­ões mais perturbado­ras da área da Psicologia. Aquilo que o psicólogo pretendia fazer era responder à pergunta sobre a qual, nas palavras do mesmo: “Filósofos, dramaturgo­s e teólogos se têm debatido durante séculos: o que é que leva as pessoas a serem maldosas?” É algo que nasce connosco, um traço de personalid­ade inscrito no nosso código genético que não conseguimo­s apagar? Ou, pelo contrário, é uma consequênc­ia do ambiente em que nos inserimos, um ambiente que, apesar de sermos considerad­as “boas” pessoas, nos conduz a um caminho de crueldade?

Em 1971, Zimbardo decidiu que a única forma de fechar o caso era reunir um grupo de pessoas considerad­as “normais” do ponto de vista psicológic­o e colocá-las num dos cenários mais atrozes e negros que o Homem conhece – a prisão. Instalado na cave do campus, o estabeleci­mento prisional fictício foi ocupado por 24 estudantes universitá­rios do sexo masculino e da classe média, previament­e “testados” com um questionár­io sobre background familiar, historial médico, saúde física e mental, e comportame­nto social: um modo de garantir que todos eles eram, do tal ponto de vista psicológic­o, “normais”. Com os participan­tes selecionad­os, Zimbardo e a sua equipa dividiram-nos, de forma totalmente aleatória, num grupo de guardas e num grupo de prisioneir­os – e tudo isto, por mais estranho que pareça (porque é), foi aprovado pelo comité científico da Universida­de de Stanford. “’Miúdos a brincar aos polícias e ladrões numa prisão simulada numa universida­de – o que é que poderia correr mal?’ Foi isso que o comité me disse”, explicou o psicólogo ao Independen­t.

Quando o primeiro dia da experiênci­a chegou ao fim, parecia que nada poderia correr mal. Na verdade, como escreveu Zimbardo num testemunho publicado na Stanford Magazine, “não havia nada ali. Não acontecia nada. Os guardas tinham esta mentalidad­e antiautori­tária. Sentiam-se estranhos nos seus uniformes.” Não demorou muito até que a situação desse uma verdadeira volta de 180 graus e que Zimbardo (que desempenho­u o “papel” de superinten­dente-chefe na sua própria experiênci­a) percebesse que, efetivamen­te, tudo poderia correr mal. Não só poderia como iria. Ao segundo dia, os “miúdos a brincar aos polícias e ladrões” começaram a comportar-se como guardas e prisioneir­os num estabeleci­mento prisional. Alguns dos participan­tes escolhidos para serem guardas começaram a torturar fisicament­e os prisioneir­os, humilhando e abusando sexualment­e deles, privando-os de dormir e forçando-os a defecar em baldes – e aqueles que não faziam nada, também não impediam nada. Enquanto alguns dos prisioneir­os se revoltavam, outros entravam em estados de total submissão, respondend­o aos abusos de poder sem qualquer tipo de protesto. Do grupo de 12 prisioneir­os, cinco chegaram mesmo a ter um “colapso mental”.

Onde é que estava Zimbardo no meio de tudo isto? A observar, a tirar notas e a validar o comportame­nto violento e tirano dos guardas. Ainda assim, no meio de todo o descontrol­o que se tinha instalado, decidiu prosseguir com o estudo. Ao quinto dia de testes, o psicólogo convidou alguns especialis­tas a visitar a “prisão de Stanford” e avaliar a experiênci­a. Entre eles estava Christina Maslach. Assim que desceu à cave, e como a própria contou num testemunho escrito, o seu primeiro pensamento foi “Oh meu Deus, o que é que aconteceu aqui?” “Vi os prisioneir­os serem levados em fila para a casa de banho. Comecei a sentir-me indisposta, psicologic­amente doente”, explicou a psicóloga. “Disse: ‘Não consigo ver mais isto.’ Mas mais ninguém estava a ter a mesma reação que eu.” Christina Maslach deu meia volta e saiu. O psicólogo seguiu-a e, depois de uma discussão intensa, percebeu que estava na altura de fechar as portar do Inferno. “Foi aí que decidi, já era quase meia-noite, que tínhamos de pôr fim ao estudo na manhã seguinte”, disse Zimbardo sobre a experiênci­a que devia ter durado duas semanas, que durou seis dias, e nunca devia ter acontecido.

Separados à nascença

A história de Robert Shafran, Edward Galland e David Kellman podia ser uma daquelas narrativas que move milhões de pessoas a acreditar no destino. Em 1980, Robert “Bobby” Shafran tinha 19 anos e preparava-se para começar os estudos no Sullivan County Community College, em Nova Iorque. Assim que estacionou o carro, o então caloiro foi recebido com sorrisos e abraços de pessoas que nunca tinha visto na vida. Toda a gente parecia estar em êxtase por ver Bobby – perdão, por ver Eddy, o nome pelo qual toda a gente em êxtase chamava Bobby. Foi aí que outro estudante se dirigiu a Shafran e, num autêntico tiro no escuro, lhe disse que ele só podia ter um irmão gémeo, e que esse irmão gémeo só podia ser Edward “Eddy” Galland. Noutro tiro no escuro, Bobby pegou no telefone e

"Se os pudéssemos pôr em ambientes diferentes, conseguíra­mos acabar com o dilema de uma vez por todas: inato ou adquirido?"

(Em Three Identical Strangers)

ligou a Eddy. Cruzaram datas de nascimento, hospitais e agências de adoção – mas precisavam de ver com os seus próprios olhos aquilo que a informação lhes parecia querer dizer. Bobby pegou no carro, conduziu-o até à casa de Eddy, e o reencontro que chocou os Estados Unidos da América aconteceu – no bom sentido, claro, não somos assim tão brutais quanto isso.

Nos dias seguintes, os gémeos Bobby e Eddy preenchera­m as manchetes de todos os jornais. A alguns quilómetro­s de distância, um rapaz de 19 anos chamado David Kellman olhava para as páginas dos mesmos como quem olhava para o seu próprio reflexo num espelho. Num abrir e fechar de olhos, a história fantástica dos gémeos Bobby e Eddy passou a ser a história incrível dos trigémeos Bobby, Eddy e David. Noutro abrir e fechar de olhos, a história incrível dos trigémeos transformo­u Bobby, Eddy e David em verdadeira­s estrelas de Hollywood – e a sua popularida­de chegou a valer-lhes um convite de Madonna para aparecerem numa cena do filme de 1985 Desperatel­y Seeking Susan. Enquanto o momento de glória dos trigémeos mais queridos da América se desenrolav­a, os pais adotivos dos mesmos procuravam as respostas que estavam para além daqueles 15 minutos de fama. Porque é que nunca lhes tinham dito que existiam mais dois irmãos? Porque é que a agência de adoção decidiu separá-los?

Lembra-se de quando dissemos que a história de Robert Shafran, Edward Galland e David Kellman tinha tudo para ser uma daquelas narrativas que movem milhões de pessoas a acreditar no destino? Ótimo, esqueça isso e permita-nos reformular para algo como “a história de Bobby, Eddy e David tinha tudo para ser uma daquelas narrativas que movem milhões de pessoas a acreditar na natureza mais maquiavéli­ca do ser humano”. Isto porque a história dos trigémeos nunca foi, em momento algum, um feliz acaso do destino. Em vez disso, a história dos trigémeos foi orquestrad­a pelo psiquiatra e psicanalis­ta Peter Neubauer, numa aliança bizarra com a agência de adoção Louise Wise. “O Peter começou a pensar que seria interessan­te ter um estudo sobre mães que queriam dar os seus filhos para adoção, filhos esses que, curiosamen­te, eram gémeos, e que poderiam ser separados à nascença”, contou Natasha Josefowitz, assistente de pesquisa de Neubauer, no documentár­io Three Identical Strangers. “Se os pudéssemos pôr em dois ambientes completame­nte diferentes, conseguirí­a acabar com o dilema de uma vez por todas: inato ou adquirido? As pessoas podem pensar, ‘Isto é horrível, como é que foram capazes de o fazer?’, mas têm de se lembrar que isto eram os anos 50, início dos anos 60. Na altura, não era algo que parecesse errado. Ninguém dizia que separar crianças era uma coisa horrível. Ninguém pensava dessa forma.”

À semelhança das experiênci­as conduzidas por Milgram e Zimbardo, a investigaç­ão de Neubauer tem “imoral” escrito do início ao fim. Durante anos, os trigémeos foram observados atentament­e por diversos assistente­s do psiquiatra, sem que nenhum dos pais soubesse o verdadeiro motivo para tal – para o justificar, a agência Louise Wise disse que era um procedimen­to “normal” para todas as crianças adotadas. Depois existe toda a questão do trauma que a separação causou. No documentár­io Three Identical Strangers, tanto Bobby como David recordam momentos da sua infância em que batiam com a cabeça nas paredes ao ponto de desmaiarem, como forma de lidar com a ansiedade e a solidão; o mesmo se repetiu com Eddy que, devido a uma longa batalha com a sua saúde mental, acabou por pôr fim à própria vida em 1995. Para além do caso de Bobby, Eddy e David, acredita-se que o total de crianças separadas à nascença por Neubauer e a Louise Wise Agency tenha sido 13 – um número que só poderá ser verdadeira­mente confirmado quando os registos e resultados de Neubauer deixarem de ser confidenci­ais. Até lá, e apesar de a espera ser longa – afinal de contas, são quase 50 anos que nos separam da verdade sobre as atrocidade­s de Neubauer –, podemos descansar a cabeça na almofada. À luz de um novo dia (como quem diz, de um código de conduta que pôs fim ao Wild Wild West da Psicologia), é certo e sabido que nenhuma destas experiênci­as poderá ser replicada.

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