SAQUEI DA FACA PORQUE ERA FRACO
Esta é a história de como brandi uma faca em frente à cara de outro rapaz. A minha escola tinha um método infalível para nos ensinar francês. A professora mais gira de todas – uma beldade a sério que nos fazia corar sempre que pedia que conjugássemos um verbo em francês – ensinava os melhores alunos. Por isso, se quiséssemos admirar esta beleza feroz de cabelo louro e de minissaia durante mais um ano letivo – e todos queríamos – tínhamos de ser mesmo, mesmo bons a francês. E assim foi que eu e os meus colegas de turma perdidamente apaixonados fizemos, nas calmas, o nosso exame de francês dois anos antes dos demais alunos. Com o exame despachado e tempo livre para aproveitar, a nossa turma ia regularmente passar o dia a Calais, onde supostamente deveríamos apurar o nosso conhecimento da língua. Na verdade, passámos horas a deambular naquelas peculiares lojas francesas que vendem todo o tipo de armas que nunca vimos em casa: espadas de samurai, matracas, estrelas ninja e facas – facas de combate, facas de caça, ponta-e-mola. Quando regressámos ao autocarro que nos levaria a casa, todos aqueles rapazes britânicos que sabiam falar francês traziam a mesma recordação escondida dentro do blazer da escola. Todos trouxemos uma faca.
A minha ponta-e-mola ficou esquecida no fundo de uma gaveta, uma recordação igno
rada do fim da minha infância. Passaram-se alguns anos e acabei por entrar no armário, indo parar a outro mundo: o Narnia dos adolescentes estranhos, onde sermos durões cheio de estilo – ou comportarmo-nos como tal – se torna muito mais importante do que conjugar verbos em francês. Foi então que apanhei uma tareia.
De repente havia festas e raparigas. Certa noite, numa festa houve uma discussão por causa de uma rapariga e eu apanhei uma tareia. Não do género que nos leva ao hospital, mas foi uma bela tareia, em que a humilhação e a vergonha foram infinitamente piores do que o olho negro e o nariz a sangrar. “Há sempre alguém mais forte do que tu”, disse-me o meu pai, uma ideia aterrorizadora – no passado, no presente e no futuro – para qualquer rapaz adolescente. Foi então que me lembrei da minha faca. O ano passado foi o ano da faca. Houve mais de 270 esfaqueamentos mortais no Reino Unido em 2018, incluindo cinco em apenas seis dias de novembro, em Londres. Em média, Londres regista agora 40 crimes envolvendo facas por dia. É um número impressionante. Houve dois meses do ano passado, fevereiro e março, em que a taxa de homicídios londrina superou a de Nova Iorque. E, embora haja mais tiroteios em Londres, a maioria das mortes ocorridas na cidade são por esfaqueamento – e a maioria das vítimas são dolorosamente jovens.
Os médicos especializados em traumatologia relatam que o seu período mais ocupado é o fim da tarde, entre as 16h e as 18h, as unhappys hours entre as quais as escolas fecham. É mais provável alguém ser esfaqueado após o horário de saída. Quando Londres registou os seus fatais cinco esfaqueamentos em seis dias, uma das vítimas tinha 16 anos e outra 15. Ao longo dos últimos quatro anos, o número de crianças admitidas no hospital com ferimentos de faca potencialmente mortais praticamente duplicou.
De quem é a culpa? O partido trabalhista culpa a austeridade. Os Tories culpam os gangues das drogas. A polícia culpa os cortes radicais no seu financiamento. O Sun disse: “Culpem a besta que anda com uma faca.” E todos têm a sua razão.
Em 2010, o Educational Maintenance Allowance (EMA), que em tempos ajudou adolescentes de famílias com dificuldades económicas a frequentarem a universidade, foi encerrado em Inglaterra pelo governo de coligação Conservador-Liberal Democrata liderado por David Cameron e Nick Clegg. Por isso, aqueles que hoje estão a crescer em Tottenham, Brixton, Barking, Hackney ou Ilford têm muito menos probabilidades de vir a sair desses sítios graças a uma formação académica decente.
No mesmo ano em que o EMA foi encerrado em Inglaterra, a então secretária de estado para os assuntos internos Theresa May começou a aniquilar o orçamento da força policial, dando início aos cortes brutais que a tornariam anorética, com a dispensa de cerca de 21.000 agentes entre 2010 e a atualidade.
Entretanto, a indústria das drogas floresceu, com um número estimado de 1.500 gangues a disputarem um negócio no valor anual de 1.800 milhões de libras, expandindo o seu mercado para além da “fronteira do condado”, chegando a vilas na província, com as suas discórdias, rixas e provocações a serem amplificadas pela comunicação social. Resumindo: há menos polícias, com menos dinheiro, a perseguir jovens homens com menos probabilidades de estudarem e cujos sentimentos acabaram de ser feridos no YOUTUBE. É um cocktail tóxico. E há uma dimensão racial no aumento dos crimes com facas que é abordada com muita delicadeza pelos crescidos, com medo de parecerem racistas.
“Primeiro, temos de ser claros sobre quem está a morrer e quem está a matar”, escreveu Trevor Phillips, antigo presidente
executivo da Comissão para a Igualdade e os Direitos Humanos. Portanto, as desesperadas tentativas da comunicação social de ignorar esta verdade – para evitar a “estigmatização das comunidades minoritárias” – tem sido contraprodutiva, um moroso abandono da responsabilidade. Poderá fazer os liberais brancos com a mania que sabem tudo sentirem-se melhor, mas o preço da sua presunção é um massacre constante de crianças negras.
O crime com facas não é um problema meramente negro. Muitas mortes ocorrem em zonas que acolheram refugiados de alguns dos países mais violentos do mundo. No entanto, o medo de estigmatizar as comunidades fez com que as operações stop e de revista tenham caído em desuso nas operações policiais. Em 2008, a Polícia Metropolitana fez 600.000 operações stop e de revista. Em 2017 foram pouco mais de 100.000.
Se tiver uma faca na sua posse, é cada vez menos provável que a polícia o mande parar. E mesmo que seja mandado parar, revistado, que descubram a sua faca e formulem uma acusação, é provável que permaneça em liberdade. Desde 2015 que há leis mais rígidas para os crimes com facas, mas raramente são aplicadas. A política Tory de “duas transgressões e vais dentro” de 2015 pretendia que os transgressores que fossem repetidamente apanhados com facas fossem automaticamente condenados a uma pena de prisão. No entanto, os tribunais sentem-se relutantes quanto a mandar até as caras mais familiares para a prisão e, no ano passado, mais de 2.000 criminosos recorrentes saíram do tribunal com pena suspensa ou condenados ao pagamento de uma coima.
Talvez o caso mais famoso seja o de Joshua Gardner, de 18 anos, filmado a brandir uma enorme faca de zombie, batendo com ela contra a janela de um carro enquanto discutia com o condutor aterrorizado. Gardner foi considerado culpado de tentativa de agressão física e de porte de arma ofensiva, mas apesar de uma condenação prévia, a sua sentença não incluiu uma pena de prisão.
Foi necessário um apelo do procurador-geral para recorrer da sentença e enviar Gardner para uma instituição para jovens transgressores durante três anos e meio.
Os políticos Tory falam muito sobre reprimir o “Faroeste do Reino Unido”, mas a verdade é que ninguém quer um aumento do número de condenações de jovens apanhados com facas, mesmo que não seja a sua primeira transgressão. As prisões estão cheias e os serviços de custódia são caros.
O presidente da câmara municipal de Londres, Sadiq Khan, reconhece que serão necessários 10 anos para pôr fim aos crimes com facas. Dez anos! Khan foi criticado pela sua complacência. Na verdade, Khan estava a ser absurdamente otimista. Como poderá o crime com facas diminuir nos próximos 10 anos? Os nossos filhos têm infinitamente mais medo uns dos outros do que da lei. Agentes policiais tímidos, tribunais brandos e fracos, pigmeus que só querem marcar pontos políticos não os convencem minimamente a largarem as facas. E o massacre continua.
Não me lembro se andar com a minha faca me fez sentir mais seguro. Mas lembro-me perfeitamente de uma vez a ter sacado e brandido diante da cara de uma pessoa. Lembro-me como se tivesse sido na semana passada. Fui abordado por vários agressores numa paragem de autocarro e, com a tareia humilhante que levara ainda fresca na minha memória, saquei da minha faca. Era de dia e a rua estava cheia de gente – as pessoas à espera do autocarro, os rapazes que queriam bater-me – mas quando a minha faca apareceu, dispersaram todos. A nossa faca fazer toda a gente fugir dá-nos uma enorme sensação de poder. Sacamos de uma ponta-e-mola francesa barata, abrimo-la e, de repente, como que por magia, deixamos de ser um adolescente assustado. Somos um homem crescido com uma lâmina na mão e, se alguém quiser tocar-nos, terá de passar pela nossa faca. Sentimo-nos protegidos, finalmente. Invencíveis, finalmente. Todavia, mesmo quando sentimos que o mundo tem medo de nós – para variar! –, se tivermos um QI razoável, sabemos que essa sensação de poder é uma ilusão.
HOUVE DOIS MESES NO ANO PASSADO EM QUE A TAXA DE HOMICÍDIOS LONDRINA SUPEROU A DE NOVA IORQUE.
E se os meus agressores tivessem continuado a perseguir-me? E se eles também tivessem facas? Será que eu espetaria a minha faca neles? Será que eles teriam espetado as suas facas em mim?
A minha faca nunca me iria salvar. Iria fazer com que eu fosse morto ou preso. A minha faca iria destruir a minha vida e outras vidas também. A minha faca vinha com a garantia de algum desastre inimaginável e avassalador.
Fui suficientemente esperto para largar a minha faca na sarjeta mais próxima. No entanto, fora suficientemente burro para a meter no bolso, porque eu era igual a todos os outros rapazes adolescentes que alguma vez andaram com uma faca. Eu não andava com uma faca por ser mau, mas porque era fraco. Isso não mudou numa geração. Para além do mundo contemporâneo, das fronteiras dos condados, das guerras online, da música drill, do crack (cocaína cristalizada), o grande motivo por trás de todos os crimes com facas permanece o mesmo – o medo de alguém ser mais forte do que nós. A maior parte dos jovens que andam com facas não são maus. “Nem bons, nem maus”, cantou Hank Williams sobre um rapaz que caiu em desgraça, “um rapaz igual a ti”.
Esse rapaz igual a ti anda com uma faca porque tem medo do que possa estar à sua espera. Devemos dar-lhe todas as oportunidades de largar a faca numa sarjeta. Devemos dar-lhe todas as razões para se libertar da vontade de espetar aquele objeto afiado no coração de alguém.
Ninguém está a fazer um favor àquele rapaz: nem a polícia desmoralizada que tem demasiado medo de o mandar parar e revistar; nem os tribunais brandos que se sentem relutantes quanto a prendê-lo; nem os políticos carreiristas que estão mais interessados em parecer durões (Tories) ou a gritar sobre a austeridade (Trabalhistas). Está apenas a pôr fim ao massacre de crianças. No entanto, alguém tem de dar àquele rapaz uma razão para largar a faca – isso pode salvar-lhe a vida. Porque as pessoas sacam de uma faca na esperança de que os problemas desapareçam.
Contudo, o que acontece com mais frequência é arranjarem problemas.