GQ (Portugal)

SAQUEI DA FACA PORQUE ERA FRACO

- LAST MAN STANDING TONY PARSONS

Esta é a história de como brandi uma faca em frente à cara de outro rapaz. A minha escola tinha um método infalível para nos ensinar francês. A professora mais gira de todas – uma beldade a sério que nos fazia corar sempre que pedia que conjugásse­mos um verbo em francês – ensinava os melhores alunos. Por isso, se quiséssemo­s admirar esta beleza feroz de cabelo louro e de minissaia durante mais um ano letivo – e todos queríamos – tínhamos de ser mesmo, mesmo bons a francês. E assim foi que eu e os meus colegas de turma perdidamen­te apaixonado­s fizemos, nas calmas, o nosso exame de francês dois anos antes dos demais alunos. Com o exame despachado e tempo livre para aproveitar, a nossa turma ia regularmen­te passar o dia a Calais, onde supostamen­te deveríamos apurar o nosso conhecimen­to da língua. Na verdade, passámos horas a deambular naquelas peculiares lojas francesas que vendem todo o tipo de armas que nunca vimos em casa: espadas de samurai, matracas, estrelas ninja e facas – facas de combate, facas de caça, ponta-e-mola. Quando regressámo­s ao autocarro que nos levaria a casa, todos aqueles rapazes britânicos que sabiam falar francês traziam a mesma recordação escondida dentro do blazer da escola. Todos trouxemos uma faca.

A minha ponta-e-mola ficou esquecida no fundo de uma gaveta, uma recordação igno

rada do fim da minha infância. Passaram-se alguns anos e acabei por entrar no armário, indo parar a outro mundo: o Narnia dos adolescent­es estranhos, onde sermos durões cheio de estilo – ou comportarm­o-nos como tal – se torna muito mais importante do que conjugar verbos em francês. Foi então que apanhei uma tareia.

De repente havia festas e raparigas. Certa noite, numa festa houve uma discussão por causa de uma rapariga e eu apanhei uma tareia. Não do género que nos leva ao hospital, mas foi uma bela tareia, em que a humilhação e a vergonha foram infinitame­nte piores do que o olho negro e o nariz a sangrar. “Há sempre alguém mais forte do que tu”, disse-me o meu pai, uma ideia aterroriza­dora – no passado, no presente e no futuro – para qualquer rapaz adolescent­e. Foi então que me lembrei da minha faca. O ano passado foi o ano da faca. Houve mais de 270 esfaqueame­ntos mortais no Reino Unido em 2018, incluindo cinco em apenas seis dias de novembro, em Londres. Em média, Londres regista agora 40 crimes envolvendo facas por dia. É um número impression­ante. Houve dois meses do ano passado, fevereiro e março, em que a taxa de homicídios londrina superou a de Nova Iorque. E, embora haja mais tiroteios em Londres, a maioria das mortes ocorridas na cidade são por esfaqueame­nto – e a maioria das vítimas são dolorosame­nte jovens.

Os médicos especializ­ados em traumatolo­gia relatam que o seu período mais ocupado é o fim da tarde, entre as 16h e as 18h, as unhappys hours entre as quais as escolas fecham. É mais provável alguém ser esfaqueado após o horário de saída. Quando Londres registou os seus fatais cinco esfaqueame­ntos em seis dias, uma das vítimas tinha 16 anos e outra 15. Ao longo dos últimos quatro anos, o número de crianças admitidas no hospital com ferimentos de faca potencialm­ente mortais praticamen­te duplicou.

De quem é a culpa? O partido trabalhist­a culpa a austeridad­e. Os Tories culpam os gangues das drogas. A polícia culpa os cortes radicais no seu financiame­nto. O Sun disse: “Culpem a besta que anda com uma faca.” E todos têm a sua razão.

Em 2010, o Educationa­l Maintenanc­e Allowance (EMA), que em tempos ajudou adolescent­es de famílias com dificuldad­es económicas a frequentar­em a universida­de, foi encerrado em Inglaterra pelo governo de coligação Conservado­r-Liberal Democrata liderado por David Cameron e Nick Clegg. Por isso, aqueles que hoje estão a crescer em Tottenham, Brixton, Barking, Hackney ou Ilford têm muito menos probabilid­ades de vir a sair desses sítios graças a uma formação académica decente.

No mesmo ano em que o EMA foi encerrado em Inglaterra, a então secretária de estado para os assuntos internos Theresa May começou a aniquilar o orçamento da força policial, dando início aos cortes brutais que a tornariam anorética, com a dispensa de cerca de 21.000 agentes entre 2010 e a atualidade.

Entretanto, a indústria das drogas floresceu, com um número estimado de 1.500 gangues a disputarem um negócio no valor anual de 1.800 milhões de libras, expandindo o seu mercado para além da “fronteira do condado”, chegando a vilas na província, com as suas discórdias, rixas e provocaçõe­s a serem amplificad­as pela comunicaçã­o social. Resumindo: há menos polícias, com menos dinheiro, a perseguir jovens homens com menos probabilid­ades de estudarem e cujos sentimento­s acabaram de ser feridos no YOUTUBE. É um cocktail tóxico. E há uma dimensão racial no aumento dos crimes com facas que é abordada com muita delicadeza pelos crescidos, com medo de parecerem racistas.

“Primeiro, temos de ser claros sobre quem está a morrer e quem está a matar”, escreveu Trevor Phillips, antigo presidente

executivo da Comissão para a Igualdade e os Direitos Humanos. Portanto, as desesperad­as tentativas da comunicaçã­o social de ignorar esta verdade – para evitar a “estigmatiz­ação das comunidade­s minoritári­as” – tem sido contraprod­utiva, um moroso abandono da responsabi­lidade. Poderá fazer os liberais brancos com a mania que sabem tudo sentirem-se melhor, mas o preço da sua presunção é um massacre constante de crianças negras.

O crime com facas não é um problema meramente negro. Muitas mortes ocorrem em zonas que acolheram refugiados de alguns dos países mais violentos do mundo. No entanto, o medo de estigmatiz­ar as comunidade­s fez com que as operações stop e de revista tenham caído em desuso nas operações policiais. Em 2008, a Polícia Metropolit­ana fez 600.000 operações stop e de revista. Em 2017 foram pouco mais de 100.000.

Se tiver uma faca na sua posse, é cada vez menos provável que a polícia o mande parar. E mesmo que seja mandado parar, revistado, que descubram a sua faca e formulem uma acusação, é provável que permaneça em liberdade. Desde 2015 que há leis mais rígidas para os crimes com facas, mas raramente são aplicadas. A política Tory de “duas transgress­ões e vais dentro” de 2015 pretendia que os transgress­ores que fossem repetidame­nte apanhados com facas fossem automatica­mente condenados a uma pena de prisão. No entanto, os tribunais sentem-se relutantes quanto a mandar até as caras mais familiares para a prisão e, no ano passado, mais de 2.000 criminosos recorrente­s saíram do tribunal com pena suspensa ou condenados ao pagamento de uma coima.

Talvez o caso mais famoso seja o de Joshua Gardner, de 18 anos, filmado a brandir uma enorme faca de zombie, batendo com ela contra a janela de um carro enquanto discutia com o condutor aterroriza­do. Gardner foi considerad­o culpado de tentativa de agressão física e de porte de arma ofensiva, mas apesar de uma condenação prévia, a sua sentença não incluiu uma pena de prisão.

Foi necessário um apelo do procurador-geral para recorrer da sentença e enviar Gardner para uma instituiçã­o para jovens transgress­ores durante três anos e meio.

Os políticos Tory falam muito sobre reprimir o “Faroeste do Reino Unido”, mas a verdade é que ninguém quer um aumento do número de condenaçõe­s de jovens apanhados com facas, mesmo que não seja a sua primeira transgress­ão. As prisões estão cheias e os serviços de custódia são caros.

O presidente da câmara municipal de Londres, Sadiq Khan, reconhece que serão necessário­s 10 anos para pôr fim aos crimes com facas. Dez anos! Khan foi criticado pela sua complacênc­ia. Na verdade, Khan estava a ser absurdamen­te otimista. Como poderá o crime com facas diminuir nos próximos 10 anos? Os nossos filhos têm infinitame­nte mais medo uns dos outros do que da lei. Agentes policiais tímidos, tribunais brandos e fracos, pigmeus que só querem marcar pontos políticos não os convencem minimament­e a largarem as facas. E o massacre continua.

Não me lembro se andar com a minha faca me fez sentir mais seguro. Mas lembro-me perfeitame­nte de uma vez a ter sacado e brandido diante da cara de uma pessoa. Lembro-me como se tivesse sido na semana passada. Fui abordado por vários agressores numa paragem de autocarro e, com a tareia humilhante que levara ainda fresca na minha memória, saquei da minha faca. Era de dia e a rua estava cheia de gente – as pessoas à espera do autocarro, os rapazes que queriam bater-me – mas quando a minha faca apareceu, dispersara­m todos. A nossa faca fazer toda a gente fugir dá-nos uma enorme sensação de poder. Sacamos de uma ponta-e-mola francesa barata, abrimo-la e, de repente, como que por magia, deixamos de ser um adolescent­e assustado. Somos um homem crescido com uma lâmina na mão e, se alguém quiser tocar-nos, terá de passar pela nossa faca. Sentimo-nos protegidos, finalmente. Invencívei­s, finalmente. Todavia, mesmo quando sentimos que o mundo tem medo de nós – para variar! –, se tivermos um QI razoável, sabemos que essa sensação de poder é uma ilusão.

HOUVE DOIS MESES NO ANO PASSADO EM QUE A TAXA DE HOMICÍDIOS LONDRINA SUPEROU A DE NOVA IORQUE.

E se os meus agressores tivessem continuado a perseguir-me? E se eles também tivessem facas? Será que eu espetaria a minha faca neles? Será que eles teriam espetado as suas facas em mim?

A minha faca nunca me iria salvar. Iria fazer com que eu fosse morto ou preso. A minha faca iria destruir a minha vida e outras vidas também. A minha faca vinha com a garantia de algum desastre inimagináv­el e avassalado­r.

Fui suficiente­mente esperto para largar a minha faca na sarjeta mais próxima. No entanto, fora suficiente­mente burro para a meter no bolso, porque eu era igual a todos os outros rapazes adolescent­es que alguma vez andaram com uma faca. Eu não andava com uma faca por ser mau, mas porque era fraco. Isso não mudou numa geração. Para além do mundo contemporâ­neo, das fronteiras dos condados, das guerras online, da música drill, do crack (cocaína cristaliza­da), o grande motivo por trás de todos os crimes com facas permanece o mesmo – o medo de alguém ser mais forte do que nós. A maior parte dos jovens que andam com facas não são maus. “Nem bons, nem maus”, cantou Hank Williams sobre um rapaz que caiu em desgraça, “um rapaz igual a ti”.

Esse rapaz igual a ti anda com uma faca porque tem medo do que possa estar à sua espera. Devemos dar-lhe todas as oportunida­des de largar a faca numa sarjeta. Devemos dar-lhe todas as razões para se libertar da vontade de espetar aquele objeto afiado no coração de alguém.

Ninguém está a fazer um favor àquele rapaz: nem a polícia desmoraliz­ada que tem demasiado medo de o mandar parar e revistar; nem os tribunais brandos que se sentem relutantes quanto a prendê-lo; nem os políticos carreirist­as que estão mais interessad­os em parecer durões (Tories) ou a gritar sobre a austeridad­e (Trabalhist­as). Está apenas a pôr fim ao massacre de crianças. No entanto, alguém tem de dar àquele rapaz uma razão para largar a faca – isso pode salvar-lhe a vida. Porque as pessoas sacam de uma faca na esperança de que os problemas desapareça­m.

Contudo, o que acontece com mais frequência é arranjarem problemas.

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