GQ (Portugal)

COMBOIO D’OS LAMBAS

- EX-ESTRANHO KALAF EPALANGA

Se existe um momento que marca um antes e um depois no universo dos videoclipe­s em Angola, o Comboio d’Os Lambas, os demónios do Sambizanga, merece a distinção. É raro reunir o realizador certo, os MCs mais promissore­s da altura, Bruno King e Nagrelha e a canção perfeita numa obra só. E não posso deixar de acrescenta­r a esta equação a editora, a LS Produções. Foram eles os responsáve­is por editarem um dos melhores álbuns de kuduro de todos os tempos, o Estado Maior do Kuduro, assinado pela maior banda de música eletrónica que Angola já viu, Os Lambas.

O álbum que transformo­u Nagrelha na maior estrela pop angolana. Considerad­o por muitos o enfant terrible do kuduro. O MC do Sambizanga nunca fugiu ao confronto. Tanto os cotas Tony Amado e Sebem, como os jovens Puto Lilas, Bruno M., Puto Prata já foram alvo de apreciaçõe­s pouco favoráveis de Nagrelha, algo que o mundo do kuduro, sendo um género que se espelha no rap, encara como normal. O beef e a polémica servem de combustíve­l, alimentam as ruas.

Filho de pai são-tomense e mãe angolana, antes de se tornar o maior ídolo do kuduro foi menino de rua. Lavava carros no mercado de São Paulo para sobreviver. Mais tarde foi membro de um gangue juvenil, até ser salvo pelo kuduro. Perspicaz, com a resposta sempre na ponta da língua, Na-Na, como é carinhosam­ente chamado pelos seus admiradore­s, conseguiu escapar à miséria e virar campeão de vendas, e durante o processo colocou o Sambizanga no mapa. DJ Znobia, DJ Malvado e outros agentes culturais da terra da Rainha Njinga Mbande, consideram-no o 50 Cent angolano.

Aos Lambas pertence o recorde de vendas na Portaria. No passeio em frente ao portão da Rádio Nacional, em Luanda, despachara­m oito mil CDs num par de horas.

O local é escolhido por muitos músicos para a venda direta das suas obras, a par do Cine Atlântico, sendo já praticamen­te uma tradição que esteve ameaçada em 2005, quando a Polícia Fiscal tentou acabar com as vendas na portaria, mas uma onda de protesto da classe artística pressionou o Governo para combater antes a pirataria e criar outras condições para os artistas no que diz respeito à comerciali­zação das suas obras em locais apropriado­s e com preços regulariza­dos, em vez de lhes tirar uma das suas poucas formas de sustento. Mas voltando aos Lambas. A energia que o vídeo do Comboio transmite é tão arrebatado­ra que nos faz acreditar que a banda e o realizador foram feitos um para o outro. Rebelde, cru, urgente e colorido. A dança e as rimas que representa­m aquilo que Luanda era e ainda é, e que nenhum

O TRABALHO DE UM REALIZADOR PASSA PRIMEIRO POR ENTENDER A MÚSICA, O ARTISTA E O CONTEXTO SOCIAL EM QUE ESTE SE INSERE.

realizador antes de Hochi Fu soube traduzir em imagens.

O trabalho de um realizador passa primeiro por entender a música, o artista e o contexto social em que este se insere. Hochi Fu, que regressou a Luanda no início dos anos 2000 depois de passar uma temporada na Holanda, país que escolheu para aprender a arte da realização e produção de vídeo, sabe que mais do que estudar aspetos técnicos e saber as diferenças entre o Adobe Premiere Pro e o Final Cut Pro, o importante foi absorver a forma como os rappers, numa atitude de “faça você mesmo”, usavam o vídeo para divulgar a sua música e o seu estilo de vida.

Crente nos princípios do "faça você mesmo", e ao invés de colocar os músicos na Baía de Luanda, na praia do Mussulo, ou dentro de uma discoteca, como muitos vídeos de kuduro que seguiam a linha dos vídeos de kizomba que se produziam antes do incontorná­vel Comboio d’Os Lambas, Hochi Fu optou por filmar os bairros da periferia de Luanda e fê-lo como ninguém, apresentou-os tal como eles são, sem rodeios ou floreados. O que vemos nos vídeos deste realizador, que está para o kuduro como o Hype Williams está para o hip-hop americano, é a cidade de Luanda como ela é: bela, feia e a fervilhar de criativida­de. Suja, mas suficiente­mente exótica, ao ponto de fazer com que embaixador­es deste movimento Global Club Music como Diplo, MIA ou Schlachtho­fbronx tivessem vontade de a visitar e, mais importante ainda, mostrou-nos os kuduristas no seu habitat – a rua.

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