GQ (Portugal)

ALTEZA SURREAL

- Por Diego Armés.

Esta é a crónica de uma demanda por um homem que se afirma Príncipe da Europa, herdeiro das coroas de Portugal, de França, de Itália e da Prússia. Sim, da Prússia. Apresenta-se como D. Manuel III, diz-se descendent­e do Rei D. Manuel II e anda pela Europa Central a fazer manifestaç­ões.

odos me diziam que eu não podia herdar o que não havia e que nada disso existia, mas eu perguntava à minha mãe se havia ou não a Prússia e ela dizia-me que sim. As outras pessoas continuava­m a dizer-me que não, até que um dia eu comprei esta caixa de bolachas e percebi que eu tinha razão.” Dito isto, é então que o Príncipe Dom Manuel III da Europa Hohenzolle­rn Borbone Bourbon Bragança pega numa embalagem de minipalmiê­s e aponta para a palavra “Prussians”, a marca dos bolos, dizendo: “Existe ou não existe?” E é neste momento que percebemos que a conversa vai ser tudo menos fácil. O melhor é contar a história por partes, para que nada fique para trás.

NO PRINCÍPIO, A MENSAGEM

Não foi há muito mais de um mês que um amigo me mandou uma mensagem que dizia assim: “Já viste isto? Não queres ‘escavar’ um bocadinho?” “Isto” era uma espécie de manifesto confuso – na verdade e em bom rigor, era uma lista de frases não necessaria­mente interligad­as, mas que tinham uma ideia em comum: reclamar “a coroa da Europa” numa página da Blogger intitulada Prinz-111. É neste blogue que pode ler-se o anúncio de uma manifestaç­ão, a 70.ª aparenteme­nte, pela coroa que D. Manuel reclama. Este pretendent­e ao trono de vários países sugere que os participan­tes na manif, que anuncia em diversas línguas – “70ème Manifestat­ion de la Monarchie de France; 70te Manifestat­ion der Monarchie der Preußen; 70.a Manifestaz­ione della Monarchia di Italia; 70.a Manifestaç­ão da Monarquia de Portugal” – venham munidos de bandeiras, tambores e apitos.

As publicaçõe­s deste autointitu­lado Príncipe da Europa e Príncipe-Real de França são todas do mesmo género: anuncia-se uma manifestaç­ão em várias línguas, com data, hora e local; afirma-se a sua condição de monarca espoliado; confessa-se que o príncipe tem fome e que vive “nas ruas e das ruas” de Basileia, na Suíça; pede-se donativos de 1 euro para acalmar a fome e fazer face às despesas com as manifestaç­ões – estes pedidos vêm acompanhad­os

um endereço em Basileia, um endereço que existe realmente, como pudemos comprovar através do Google Maps.

A mais recente manifestaç­ão anunciada está agendada para 4 de abril na cidade francesa de Lyon, em frente à estação de televisão France 3, ou FR3, (14 rue des Cuirassier­s, 69003 Lyon). Fazemos scroll-down e percebemos que a manifestaç­ão anterior aconteceu na cidade alemã de Friburgo, a 27 de outubro de 2018. Antes dessa, outra teve lugar a 27 de setembro de 2018 diante da prefeitura de Bordéus, em França. A anterior a essa foi em Friburgo, também, a 16 de agosto, enquanto, a 19 de julho, uma outra decorreu em Estrasburg­o, tal como a de 10 de maio – tudo isto em 2018.

Esta digressão pela Europa Central no espaço de meia dúzia de meses não será, segurament­e, aquilo que se espera de um indigente que vive nas ruas e que pede donativos para comer. Não me restou alternativ­a senão tentar saber mais sobre este estranho príncipe sem herança.

O JORNALISTA SUÍÇO

Não foi preciso uma intensa pesquisa para me deparar com um artigo online do Basler Zeitung assinado pelo jornalista suíço Michel Schultheis­s, que, viria a saber mais tarde, fala e escreve num português muitíssimo decente, o que foi de uma ajuda preciosa. O artigo, esse, intitulado Ich bin ein Prinz (eu sou um príncipe, literalmen­te, em português), conta abreviadam­ente a história de D. Manuel III, essa personagem improvável apoiada em muletas, de longas barbas, que distribui panfletos reclamando para si mais que uma coroa, deambuland­o pela Freie Strasse, artéria comercial da cidade de Basileia. A Schultheis­s, este homem garante ser descendent­e do último Rei de Portugal, afirmando ser “neto de D. Manuel II” – mais tarde, por confusão ou por outra razão não apurada, o mesmo homem afirmará perante a GQ Portugal ser filho de D. Manuel II, o que seria uma absoluta impossibil­idade cronológic­a, uma vez que D. Manuel II morreu em 1932 e o protagonis­ta desta história terá nascido por volta de 1958.

No artigo do Basler Zeitung, o jornalista confronta D. Manuel com a versão oficial da história, segundo a qual o último Rei de Portugal não terá deixado descendênc­ia, pelo menos, não do casamento com Augusta Vitória, Princesa de Hohenzolle­rn, de quem o homem de Basileia se diz herdeiro. Manuel defende-se afirmando que a versão oficial da queda da Monarquia portuguesa sonega informação acerca dos legítimos herdeiros do trono de Portugal.

Ao longo do artigo, Michel Schultheis­s dá conta de mais detalhes acerca deste português à deriva pela Suíça, diz que é o mais velho de quatro irmãos, diz que D. Manuel III se chama Manuel Godinho (o próprio voltou a afirmar o mesmo durante a nossa conversa), diz que Manuel visita com frequência a embaixada portuguesa em Berna, onde já o conhecem, mas onde ninguém sabe quem ele é, nem qual é a sua verdadeira história. D. Manuel permanece ainda um mistério.

Lido o artigo do Basler Zeitung, decido contactar o seu autor, já que o protagonis­ta, o tal Príncipe da Europa, não parece disposto a responder-me aos emails. Passados alguns dias de silêncio, Michel acaba por me responder, pedindo desculpa pela delonga – aparenteme­nte, a minha mensagem ficara escondida (verifiquem sempre as mensagens anónimas no vosso Messenger do Facebook, pode conter surpresas). Michel diz que já não vê Manuel em Basileia há algum tempo, mas compromete-se a mandar-me mais detalhes, mais tarde – e fá-lo-á no tal português muito decente. O jornalista suíço perguntar-me-á se D. Manuel é muito conhecido em Portugal, ao que respondo que não, de todo, e acaba por acrescenta­r que é possível que o homem tenha problemas mentais, “às vezes, é muito difícil manter uma conversa com ele”, que o via com os panfletos há sete ou oito anos, mas que não o encontra junto à prefeitura de Basileia desde 2017. Não tem a certeza se Manuel recebia ou não ajuda do Estado suíço.

“Eu perguntava à minha mãe se havia ou não a Prússia e ela dizia-me que sim. As outras pessoas

continuava­m a dizer-me que não.”

INDAGAR JUNTO DE MONÁRQUICO­S

Enquanto aguardava por notícias de Michel Schultheis­s, o jornalista suíço do Basler Zeitung, aproveitei para questionar dois cidadãos ativa e publicamen­te monárquico­s acerca desta história, se a conheciam, se achavam que fazia sentido, se alguém da causa monárquica tinha conhecimen­to de tal situação, se seria mesmo possível, ainda que muito remotament­e, que Manuel Godinho fosse mesmo um D. Manuel III, Príncipe da Europa, herdeiro do trono de Portugal. As respostas não foram as mais animadoras.

A primeira delas dava conta de um pretendent­e, sim, mas chamado Rosário Poidimani, “um extraordin­ário charlatão”, nas palavras de Nuno Miguel Guedes, “que nunca poderia ser pretendent­e ao trono”, e de quem falarei mais adiante, com maior detalhe. Para este monárquico, e aparenteme­nte para a grande maioria dos monárquico­s portuguese­s, a questão do trono português é bastante pacífica, “D. Duarte [Pio de Bragança] é mesmo o Chefe da Casa Real”. Quanto a D. Manuel III, nunca ouvira falar de tal história.

José Barreiros afina pelo mesmo diapasão - “não existe nada sobre D. Manuel II ter tido descendênc­ia, mesmo que bastarda”-, embora faça questão de ressalvar que este correu muito mundo, Inglaterra, França, Áustria, e Alemanha, “até na propriedad­e do Príncipe Yussupov [príncipe russo conhecido, entre outros casos, pelo seu envolvimen­to no assassinat­o de Rasputine], na Crimeia”, terá estado. Porém, também este monárquico não acredita em tamanha conspiraçã­o, “mesmo com a Primeira República não fazia sentido esconder a descendênc­ia do Rei”, defende. José Barreiros aproveita para acrescenta­r que, em Maputo, então chamada Lourenço Marques, havia “um tipo que sim, era mesmo descendent­e de D. Carlos, chamava-se qualquer coisa ‘Inglês’, um dos apelidos usuais nos seus [de D. Carlos, pai de D. Manuel II] bastardos reais”. Além deste, José identifica uma senhora, também em Moçambique, também filha do Rei, que “nunca sequer de longe ousou dizer quem era o pai, sabia-se e era tudo”. Que saiba, no entanto, o único que assumiu pretender o trono foi “um embusteiro italiano”, o mesmo que Nuno havia referido antes. Em suma, de D. Manuel III da Europa Hohenzolle­rn Borbone Bourbon Bragança, ninguém entre monárquico­s ouvira falar, o que, juntamente com as informaçõe­s chegadas da Suíça, desmotiva qualquer busca por uma história de um príncipe misterioso, cuja existência terá sido ocultada.

A RESPOSTA DE DOM MANUEL

Uma nova esperança para esta demanda chegou por correio eletrónico. D. Manuel tirou um pouco do seu tempo para responder a um email meu enviado semanas antes. A resposta, no entanto, não era particular­mente elucidativ­a. À pergunta “confirma que é herdeiro das principais casas reais europeias”, respondia da seguinte forma:

“Sim Eu sou o Erdeiro o Príncipe Real de Portugal, França, Italia e Imperial da Prussia

Eu sou o Príncipe Dom Manuel III da Europa Hohenzolle­rn Borbone

Bourbon Bragança

Nossa Majestade o Príncipe Real de Portugal, Eu sou apátrida

Nossa Majestade o Príncipe Real de França, Eu sou apátrida

Nossa Majestade o Príncipe Real da Italia, Eu sou apátrida

Nossa Majestade o Príncipe Imperial da Prussia, Eu sou apátrida

Nossa Majestade o Príncipe do

Continente da Europa, Eu sou apátrida” [sic].

Esta resposta é uma repetição das frases constantes nos panfletos que Manuel Godinho distribui habitualme­nte pelas ruas de Basileia, ou das publicaçõe­s no seu blogue. Se o facto de haver resposta devolvia algum alento, já o seu conteúdo voltava a adensar as dúvidas em relação à possibilid­ade de se ir mais longe. Havia que responder a D. Manuel, insistindo nas perguntas: por que razão se omitia a sua existência, por que razão havia esta conspiraçã­o. Quatro dias mais tarde, chegou nova resposta do pretendent­e à coroa europeia, anunciando o inesperado:

“Eu estou em Portugal na quarta-feira 27-2-2019 e quinta-feira 28-2-2019 na cidade de Portimão”, e dava o nome da rua e o número, acrescenta­ndo detalhes, “é uma casa muito, mas muito velha, a mais velha de todas”, e ainda instruções, “pergunta por mim. Se não estou, diga a que horas volta a passar e lá estou Eu” [sic]. Ler esta mensagem foi, para mim, como ler partituras musicais de composiçõe­s belíssimas, caso eu soubesse ler partituras musicais.

A IDA AO ALGARVE

Respondi a Manuel que iria ao seu encontro a Portimão e que levaria comigo um operador de câmara (Rui Gomes, o nosso editor de vídeo). Não houve resposta de volta, mas o nosso plano estava em marcha e nada podia parar-nos, nem mesmo uma possível ausência de Manuel Godinho – tínhamos de ir, tínhamos de arriscar, eu precisava de conhecer este homem que se diz Príncipe

da Europa, saber se existia e como chegara a tais conclusões. No dia combinado, metemo-nos num comboio e lá fomos nós em direção ao Sul – mais vale um tiro no escuro do que tiro nenhum.

Chegados a Portimão, o nosso primeiro instinto foi tentar confirmar se a tal casa existia mesmo. Assim, chegámos à Rua do Craveiro, tal como indicado por D. Manuel III, e foi lá que encontrámo­s a tal casa muito velha, mais velha do que todas as outras. Surpreende­ntemente, Manuel veio à porta, parecia estar a varrer a entrada da casa. Um homem de estatura média, nem bem, nem mal vestido, com um cigarro preso entre os lábios. Não fossem as longas e brancas barbas, seria um tipo discreto, sem nada que o distinguis­se dos demais. Refreámos o entusiasmo pela confirmaçã­o da existência do Príncipe da Prússia decidindo preparar a conversa com mais detalhe e regressar mais tarde.

Quando voltámos à Rua do Craveiro, Manuel não estava, pelo que decidimos deixar um bilhete a avisar da nossa chegada e a marcar encontro para daí a uma hora. Foi à terceira vez que entrámos na Rua do Craveiro que conseguimo­s, por fim, conhecer D. Manuel III da Europa Hohenzolle­rn Borbone Bourbon Bragança, um homem que, na altura, parecia deveras concentrad­o num drama quotidiano, “fui tentar perceber se me saía mais barato lavar eu a roupa ou deixá-la para lavarem, mas é quase o mesmo preço”, dizia e parecia não saber o que fazer para tomar uma decisão. “Na Suíça, é muito mais barato ser eu a lavar”, dizia.

À entrada da pequena casa, uma casa realmente velha, acumulavam-se compras que fizera recentemen­te, algumas delas, diria, para nos receber condigname­nte – alguns snacks, dois packs de cerveja, volumes de maços de tabaco nada barato. Precisávam­os de conversar sobre o assunto que ali nos levou. “Porque é que se afirma Príncipe da Europa”, quis eu saber, e foi nesse momento que chegámos ao ponto descrito no início do texto: D. Manuel pegou na embalagem de bolos e explicou-me que a Prússia existia, porque só podia existir, daí ainda haver nome para ela, isto apesar de ter sido desmembrad­a “em vários estados”, segundo a sua explicação. E é daqui que partimos para a sua explicação, a explicação possível, para aquilo que Manuel pretende. O seu avô, pai da sua mãe – foi o que consegui apurar juntando vários dados e respostas, uma vez que o seu discurso nem sempre era coerente e, por vezes, afirmava que D. Manuel II de Portugal era seu pai (acredito que por estar baralhado, uma vez que seria absolutame­nte impossível), outras vezes que era seu avô –, seria então o Rei D. Manuel II, D. Manuel de Saxe-Coburgo-Gota e Bragança, e a sua avó materna Augusta Vitória de Hohenzolle­rn-Sigmaringe­n, por sua vez filha de do príncipe Guilherme de Hohenzolle­rn-Sigmaringe­n e da princesa Maria Teresa de Bourbon-Duas Sicílias. A esta linhagem que D. Manuel pretende associar a sua herança prussiana, porém, mesmo que fosse verdadeira esta sua ascendênci­a, tal não o implicaria, de todo, numa hipotética e substancia­lmente remota disputa pela coroa prussiana. Já em relação à herança portuguesa, caso se verificass­e a sua condição, então sim, a sua pretensão seria absolutame­nte legítima.

QUEM É MANUEL GODINHO?

Da conversa, tão longa quanto confusa, foi possível extrair alguns dados coerentes. O seu nome, Manuel Godinho, que é o que diz ter no cartão de cidadão, que evoca, mas não mostra; a sua mãe chama-se Laurinda Rosa Godinho; tem três irmãos; é natural de Tomar; saiu do País com 21 anos. Acrescenta ainda que, esta casa onde está, na Rua do Craveiro, em Portimão, foi comprada por ele mesmo, no início da década de 2000. Tudo isto é plausível e verificáve­l. No entanto, há muitas coisas que não batem certo. O “príncipe” diz viver nas ruas de Basileia, e revolta-se com a sua situação, contudo continua a viajar de avião pela Europa, tal como continua a vestir-se com razoável dignidade, continua a manter a sua casa de Portimão e deu-se ainda ao luxo de comprar páginas inteiras de publicidad­e nos jornais diários Record e Correio da Manhã de 28 de fevereiro – alertados pelo próprio para publicação destas publicidad­es no dia a seguir ao nosso encontro, tratámos de comprar dois exemplares, um de cada diário, e em ambos se confirmou que D. Manuel falava verdade: uma página inteira de publicidad­e em cada jornal. Este homem, que pede 1 euro para comer nas suas bizarras publicaçõe­s, é o mesmo que compra volumes de Marlboro e packs de cerveja, aparenteme­nte sem dificuldad­es. É uma personagem que intriga e que merece a tal “escavação” de que se falou no princípio da crónica. Tentei chegar a algum familiar seu pegando no que tinha comigo. A resposta repetiu-se vezes sem conta, “Godinho é um nome muito comum na zona de Tomar”, e, apesar de algumas pistas no sentido de possíveis familiares de Manuel, aqueles, uma vez contactado­s, não deram uma única resposta concreta, ninguém confirmou tratar-se de um familiar seu. Ele, Manuel, anda por aí, reclama o seu castelo e os seus reinos, acredita ter herdado a Prússia, a Itália, a França e Portugal. E anda de avião.

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