O ESPECIALISTA EXPLICA
“Existiram resgates e intervenções que podiam ter sido evitados.”
Tiago Cardão-Pito é professor no ISEG e autor do livro A Crise Bancária em Portugal, a meias com Diogo Baptista. À GQ, diz que “durante muito tempo recusou-se a admitir que existia uma crise bancária em Portugal” e defende sanções mais duras para os gestores e acionistas em caso de gestão danosa.
De acordo com o Tribunal de Contas, a fatura para o erário público com a banca na última década estava, no fim de 2018, perto dos 17 mil milhões de euros. Este valor, bastante elevado, justifica-se na sua totalidade? Ou seja, existiram resgates ou intervenções que podiam ter sido evitáveis? O valor identificado pelo Tribunal de Contas refere-se a custos diretos com a crise bancária. Contudo as crises bancárias podem gerar custos indiretos bastante elevados. Por exemplo, em muitos casos as crises bancárias vão provocar diminuições drásticas na concessão de crédito, isso vai levar a uma diminuição da atividade económica pois muitas empresas e famílias deixam de poder financiar os seus projetos. Logo, isso leva a uma diminuição da cobrança de impostos e aumento drástico do desemprego cujos custos e encargos sociais se refletirão nas contas públicas. Estes custos podem ser demonstrados, embora sejam difíceis de quantificar com exatidão. O valor de 17 mil milhões de euros (aproximadamente 10% do PIB anual português) está, portanto, muito abaixo do valor do custo real da crise bancária para a economia portuguesa.
Sem dúvida que existiram resgates e intervenções que podiam ter sido evitados. Durante muito tempo recusou-se a admitir que existia uma crise bancária em Portugal. Dizia-se que a saúde financeira da banca portuguesa era boa apesar do acumular de casos extraordinários. Isso fez com que o real problema crescesse acima do necessário. As repercussões infelizmente vão sendo conhecidas.
Uma das justificações habitualmente apresentadas é que deixar cair um banco custaria mais ao contribuinte do que salvá-lo, não só económica como socialmente. Será mesmo assim? As economias contemporâneas estão profundamente assentes em sistemas bancários, pelo que o colapso de um banco de média/larga dimensão pode gerar pesadas consequências económicas e sociais. Daí que a solução de deixar cair o banco e depois ver o que acontece é sem dúvida irresponsável. Muitas pessoas, famílias e organizações perderiam simplesmente as suas poupanças.
Contudo, relativamente às possíveis soluções, estas não têm de ser o de simplesmente enviar dinheiro público para o banco a ver se o problema se resolve. Em alguns casos pode ser preferível encerrar o banco, onde os depositantes recebem de volta os seus valores (totalmente ou quase), e o ativo do banco é vendido para colmatar os custos da intervenção. Não falo apenas do património imobiliário (edifícios, terrenos, obras de arte etc.). Os contratos de empréstimos também têm valor. Por exemplo, a carteira de empréstimos à habitação pode ser vendida a outro banco.
Mas isso tem de ser visto caso a caso. Em alguns bancos, é possível retomar a atividade do banco após uma intervenção e com menos custos para o país. Para além disso, um banco depois de nacionalizado não precisa de ser vendido ao desbarato com grandes perdas para o erário público. Se o negócio potencial for mau, mais vale manter-se o banco na esfera pública.
Outra das justificações que o público tem dificuldade em compreender é o chamado efeito de contágio: se um banco cair os outros vêm por aí abaixo. Trata-se, de facto, de um risco real ou estará a ser empolado? É um risco real. Vejam-se os casos português, irlandês, ou grego onde a generalidade dos bancos foi seriamente afetada pela crise bancária. Para além da dependência das economias contemporâneas face ao setor bancário, os bancos internacionais são muitas vezes interdependentes entre eles. Existem também casos conhecidos de contágios internacionais, onde a crise dos bancos num país afetou bancos noutros países, e como tal as respetivas economias. No entanto, isso tem mais uma vez de se ver caso a caso. Não é automático que esse risco se materializará.
No seu livro, escreve que a entrada de Portugal no Euro terá contribuído para que existissem “ciclos bancários perigosos”. As crises seguintes, como a do BPN, ou, mais recentemente, do BES/Novo Banco podem ainda ser justificadas com esse boom da procura de financiamento em instituições estrangeiras? Em grande parte, sim. Com a eliminação da taxa de câmbio através do euro, nos primeiros anos do euro os bancos portugueses tiveram a possibilidade de se endividar rapidamente no estrangeiro. Daí resultou uma bonança de liquidez e um crescimento dramático do crédito. A partir de 2007, quando os bancos portugueses já estavam bastante endividados face ao estrangeiro, as suas condições de financiamento deterioraram-se ficando os bancos portugueses numa situação bastante difícil. Isso resultou numa contração drástica do crédito numa economia que nos anos anteriores se habituara a crédito relativamente fácil. Existiram sem dúvida situações de má gestão e concessão de crédito de forma bastante duvi
dosa senão mesmo criminosa Alguns projetos eram mais que questionáveis Contudo é neces sário perguntar de onde vinha o dinheiro para conceder todos aqueles créditos Justamente vinha das possibilidades de financiamento no exterior permitidas pela nova moeda única Esse dinheiro no entanto não era dado aos bancos portugueses mas emprestado
Ainda considerando a elevada conta para os contribuintes podemos falar em ges tão de risco para não dizer irresponsá vel da banca nacional nas últimas duas décadas? Como expliquei antes houve duran te muito tempo um erro no diagnóstico onde se recusava a admitir a existência de uma crise bancária Como a situação de um médico que tenta curar uma maleita que não sabe qual é Por outro lado o euro representou uma mudança de funcionamento drástica nas economias e nas sociedades dos países aderentes Nem todas as consequências poderiam ser conhecidas ou acauteladas
A análise não pode ser feita apenas em termos nacionais Tem de ser feita no contexto da moe da única no qual o nosso país participou Existia demasiado otimismo face ao euro supondo se que não traria riscos ou problemas e que os mercados o fariam funcionar na perfeição Infe lizmente esse não foi o caso Repare que muitos mecanismos para fazer face à crise foram cria dos apenas após a crise Não existia sequer uma análise avançada de que a moeda única poderia acarretar riscos e problemas
Sem dúvida que existiu uma análise menos cui dada das massivas transferências de capital in terfronteiras Contudo esse não foi apenas um problema nacional Verificou se também nas instituições europeias e nos bancos estrangeiros que concederam financiamentos de elevado ris co aos bancos portugueses Se ninguém tivesse emprestado o dinheiro aos bancos portugueses eles se calhar não tinham entrado em crise E quanto à perceção do público como é que é possível justificar que se gaste tan to dinheiro dos contribuintes a resgatar o setor financeiro quando não se faz o mesmo em outros setores da economia ou mesmo no financiamento do Estado Social? Eu próprio às vezes também tenho difi culdade em compreender como isso é possível Atualmente existe um mecanismo de resolução onde parte das intervenções num banco serão da responsabilidade da banca nacional Banca na cional é uma figura de estilo pois vários bancos foram vendidos a investidores estrangeiros a bai xo preço Porém resultam ainda muitos custos para o erário público
Para além disso o País teve de se endividar bas tante não só para intervir nos bancos como para fazer face às consequências da crise bancária na economia e na sociedade Daí existirem despe sas muito elevadas com juros que poderiam ser antes muito mais bem aplicadas no desenvolvi mento do País
O esbatimento na banca da fronteira entre os bancos de investimento e os tra dicionais bancos comerciais focados no financiamento às pessoas e às empresas contribuiu também para estas crises? Esse é um problema relevante em muitas crises ban cárias Em concreto a banca de investimento poder especular e gerir de forma demasiado ar riscada os fundos dos depositantes dos bancos comerciais Os depositantes são as pessoas as famílias e as organizações A medida de sepa ração entre banca de investimento e comercial foi tomada por exemplo nos EUA após a crise de como resposta a crise Só foi suspensa muito mais tarde pelo Presidente norte america no Bill Clinton No entanto em Portugal nunca tivemos um mercado de capitais muito desenvol vido pelo que nunca tivemos também uma gran de tradição de banca de investimento Os bancos portugueses tendencialmente acumularam as vá rias funções o que permitiu o financiamento dos bancos via mercados
A União Europeia tem vindo a tomar algumas medidas para voltar a separar com mais rigor a banca de investimento da banca de retalho/co mercial Nos EUA existem tendências desregu ladoras que podem ser muito problemáticas no futuro
Seria possível fazer mais não só interna como externamente em termos de re gulação e compliance? Após a crise foram tomadas algumas medidas importantes no es paço europeu Existe uma maior interligação na supervisão e no controlo bancário O Banco Central Europeu supervisiona os grandes bancos e os bancos centrais nacionais supervisionam os outros bancos Existe muito maior atenção aos fluxos de capitais entre fronteiras Os critérios de controlo são mais exigentes e os bancos são sistematicamente expostos a testes de stress o que é positivo
Não existe no entanto nenhum país que seja completamente à prova de crise bancária Penso que deveriam ser criadas medidas de coação e sanção mais duras tanto para os gestores ban cários como para os acionistas dos bancos onde exista manifesta má gestão ou mesmo gestão da nosa As autoridades reguladoras deveriam tam bém tornar mais transparente o que consideram uma crise bancária e em que casos os bancos po dem ser intervencionados e/ou nacionalizados