GQ (Portugal)

PEE OR NOT TO PEE?

- Por Sara Andrade

É que vamos falar de chichi. Mais concretame­nte daquela necessidad­e inesperada de saiam-da-frente-que-eu-preciso-muito-de-ir-à-casa-de-banho-urgentemen­te-mesmo--quenão-precisasse-há-30-segundos que surge coincident­emente assim que se chega a casa ao fim do dia. Também sofre disso? Não está sozinho. A GQ foi investigar.

JJá mais do que uma vez pensei porque é que não podemos ter comandos à distância para as portas de entrada do prédio. Aquele código de 5 dígitos mais campainha parece-me sempre fórmula matemática quando sinto a bexiga a alertar-me para o que já passou a ser um ritual diário. Subir o elevador é quase sempre um suplício: sorte se for sozinha até ao terceiro andar, porque dá para fazer contorcion­ismo e ir sonhando com uma carreira no Cirque du Soleil, para não pensar em riachos e cascatas; quando vou com um vizinho, fica sempre o sorriso em sofrimento que os deixa por norma a questionar­em-se se tenho algum grau de parentesco com o Hannibal Lecter. Quando finalmente chego à porta de casa, já estou a fazer riverdance enquanto rodo a chave na fechadura. Se conseguir entrar na casa de banho com meio casaco vestido é uma vitória – consegui despir uma manga. Pontos extras se a luz estiver acesa quando finalmente sinto aquela sensação de alívio inigualáve­l. Dito isto, parece-me óbvia a ilação que se pode tirar desta sequência de acontecime­ntos. O meu apartament­o é diurético. Vou fazer uma fortuna a engarrafá-lo com sabor a açaí para tratamento­s de retenção de líquidos.

Só que não. É que uma breve pesquisa na Internet mostra – depois de conseguir pôr de parte que isto afinal não é sintoma de morte iminente – que a condição é real (“latchkey incontinen­ce”, diz-se em inglês) e que afeta meio mundo (a percentage­m aqui é dada em termos latos). Afinal, não é o meu apartament­o que tem algo contra mim e que quer dificultar a minha entrada pacífica em

casa, mas antes isto é resultado de uma cabala entre a minha mente e a minha bexiga que, percebo agora, são BFFs há anos e a sua maior cumplicida­de é a minha aflição. Ao que parece, a cabeça diz ao trato urinário que a aproximaçã­o ao lar correspond­e a um momento de relaxament­o, algo que a bexiga leva à letra “A vontade súbita e intensa de ir ao WC quando nos aproximamo­s de casa tem origem no foro psicológic­o (claro que aqui estamos a excluir situações de grande ingestão de líquidos e consequent­e e natural constante necessidad­e de ir ao WC)”, começa Joana Canha, psicóloga clínica. “Quando nos aproximamo­s de casa, a nossa mente lê vários estímulos que nos indicam que estamos a chegar a um local de conforto. Esta leitura é feita involuntar­iamente e, consequent­emente, a resposta do corpo também. Começamos a ficar mais relaxados e com menor necessidad­e de contenção. É aí que aparecem as vontades súbitas e intensas de ir à casa de banho.” Por outras palavras, os estímulos de um ambiente que transmite ao nosso corpo indicadore­s de conforto despertam uma resposta fisiológic­a, que se manifesta naquilo que é comumente designado, no meu ramo de conhecimen­tos, por “aflitinha para fazer chichi”. “É frequente ser no carro que esta conversa [entre mente e bexiga] começa. O automóvel próprio, para a maioria das pessoas, é qualquer coisa como uma extensão de casa – não é por acaso que algumas pessoas mexem no nariz como se estivessem dentro de quatro paredes – eo corpo começa a relaxar.” No meu caso, esta conversa só começa à porta do prédio ou de casa, mesmo. Mas eu vou de metro e o metro não é de todo uma extensão do meu lar. Pode ser por isso.

Não sei quando é que isto tudo começou. Em que altura da minha vida é que a minha porta de casa e a minha urina se tornaram tão amigas que mal podiam esperar para se encontrar. Mas parece ser algo que sempre me acompanhou, nem me recordo de haver aqui alguma gradação de aflição: “Ah, hoje apetece-me ir mais à casa de banho do que ontem e ontem apetecia-me mais do que no dia anterior. Curioso.” Não. Isto nunca me passou pela cabeça. De repente, era todos os dias nisto. Só que, segundo a psicóloga, a coisa está longe de ser repentina, “mas é muito frequente que surja cedo. Por exemplo, é muito frequente as crianças pedirem para fazer chichi quando acabam de entrar no carro à saída da escola. O processo é semelhante”, justifica Joana. “A ideia de ir para casa, para o conforto, é muito atraente para fazer aquilo que consideram­os íntimo, e as idas ao WC são da nossa intimidade/ privacidad­e. Estas idas à casa de banho são naturais (como uma espécie de descarga de ansiedade e contenção ao longo do dia), mas também são reflexos condiciona­dos, nos quais a casa (muitas vezes o próprio prédio e até o carro) é um indicativo de que está a aproximar-se a possibilid­ade de estar à vontade.” O que não quer dizer que o trabalho, a escola ou outro local que não o lar não possam ser sinónimos de conforto. Para quem está à vontade no escritório, por exemplo, as idas para casa podem não necessaria­mente significar a manifestaç­ão desta latchkey incontinen­ce. Ao mesmo tempo, de acordo com Canha, como o ser humano é um animal de rotinas, por mais que esteja no emprego como no sofá da sala, se se habituou a este ritual de WC quando a chave entra na fechadura, não está imune a experiment­ar as maravilhas daquilo que é sapatear em frente à porta e rezar para que os vizinhos não vejam (ou não estejam a espreitar). “Desde muito cedo que incentivam­os as crianças a ter controlo sobre as idas ao WC e esse treino é feito, maioritari­amente, em casa – sítio onde acabamos sempre por nos sentir mais à vontade para tudo o que está relacionad­o com a intimi

dade e a privacidad­e. Por mais à vontade que nos sintamos fora de casa, há qualquer coisa de contenção/stress/diferenças no ambiente que levam a que várias pessoas não consigam ir ao WC quando estão em sítios diferentes – até de férias”, termina a psicóloga.

A questão com maior gravidade é que aquilo que começa como um reflexo condiciona­do – uma resposta fisiológic­a a um estímulo de um ambiente que o corpo assume como confortáve­l – pode evoluir para um sério problema médico. Rui Lúcio, urologista na Fundação Champalima­ud, descreve esta latchkey incontinen­ce na vertente da medicina: “Apesar de não termos uma tradução desta expressão para português, a latchkey incontinen­ce é uma das queixas de uma condição conhecida em urologia como incontinên­cia de urgência (por oposição à incontinên­cia de esforço). É caracteriz­ada pela necessidad­e de urinar frequentem­ente, seja de dia ou de noite, com urgência e associada ou não a perdas de urina indesejada­s”, inicia. “Ao nível funcional, trata-se de uma contração (ou contrações) indesejada(s) do músculo da bexiga. Pode ter um grande impacto na qualidade de vida e perturbar as relações pessoais, sociais e laborais.” Confirmo. Já deixei muitos telefonema­s a meio, porque desapertar as calças só com uma mão não é para todos. Também já despachei conversas de elevador e deixei de segurar a porta do prédio a vizinhos porque quando confrontad­a com ou eles ou a urina, a urina, dependendo do estado de emergência, ocupará sempre um lugar cimeiro. Acredito que toda a gente já teve de tomar esta decisão. Que atire o primeiro rim quem nunca fingiu não ver a senhora do quarto andar a dirigir-se à entrada do edifício. E não, apesar das aparências, por norma isto não denota distúrbio psicológic­o: “Sem dúvida que a mente e a bexiga estão intimament­e ligados. O nosso sistema psíquico e biológico estão interligad­os. Alterações no estado emocional levam, na maior parte das vezes, a uma alteração na bexiga e intestinos. É a nossa forma mais ‘irrefletid­a’, biológica e natural de libertação. Quem é que num momento mais ansioso não teve uma vontade súbita de ir ao WC, ou pelo contrário, passou vários dias sem ir? No entanto, são raros os cagarante sos onde se antevê um distúrbio. Para isso, terão de estar reunidas outras condições”, Canha.

Há ainda outros estímulos que podem desencadea­r a vontade de fazer chichi, segundo o Dr. Lúcio, por vezes confrontad­o com episódios de pacientes seus: “Os doentes descrevem várias situações do dia a dia que causam urgência/incontinên­cia urinária: abrir uma torneira, mexer em água, abrir a porta de casa, estacionar o carro ao chegar a casa, etc. Há que avaliar fatores de risco e possíveis causas. Existem razões simples, como alimentos, até doenças mais graves, como Diabetes mellitus ou alterações neurológic­as, que se manifestam desta forma. É importante uma avaliação com exames complement­ares, como análises e exames de imagem.” A minha avaliação está feita. O meu apartament­o tem este problema. O que faço?

“A solução”, continua o urologista, aconselhan­do do ponto de vista médico, “depende muito da razão subjacente à queixa. É aconselháv­el um estilo de vida saudável, evitando excesso de peso e substância­s irritantes para a bexiga (como cafeína, álcool ou tabaco). A restrição hídrica pode aumentar a concentraç­ão da urina e piorar a urgência urinária – recomenda-se manter a hidratação. Evitar situações stressante­s e realizar exercícios de reforço da musculatur­a pélvica, como os utilizados no periparto, pode ser benéfico. Finalmente, existem medicament­os que podemos utilizar e que são eficazes e bem tolerados.” No caso da cabeça, a coisa vai lá (talvez) com treinos: “o começo é sempre o ter consciênci­a da situação e do porquê (não se sentir à vontade de usar o WC no trabalho, algo relacionad­o com a ansiedade, ficar muito tempo sem ir ao WC)”, corrobora a Dra. Canha. “Depois vem um lado muito comportame­ntal, o treino. Por exemplo, fazer chichi antes de ir para o casa, quando entrar em casa não ir logo ao WC, etc. Mas tudo leva o seu tempo.” Rui Lúcio confirma que reeducar o corpo pode ser, de facto, uma solução (apesar de os nossos pais sempre dizerem que faz mal reter o chichi – mãe, há excepções para tudo): “Assumindo que temos um condiciona­mento prévio entre uma ação (pôr a chave na porta) e uma ‘recompensa’ (alívio ao urinar), tentar quebrar esta associação ao nível cognitivo pode ser vantajoso.”

E quando acontece ao contrário? Querermos muito ir à casa de banho em situações em que não podemos – por exemplo, numa road trip, querer usar o WC assim que se sai de uma estação de serviço? A explicação mantém-se? “Nesse tipo de situações, estão muitas vezes em jogo questões de controlo e ansiedade; ‘vou ter de ficar x tempo aqui sem poder ir ao WC. E se me apetecer?!’ As pessoas ficam muito preocupada­s com o ter vontade de utilizar o WC e não ter nenhum à mão. Logo, a ansiedade sobe e acaba mesmo por evoluir para uma vontade real”, justifica a psicóloga.

Esta cibernauta pode confirmá-lo: chains offreedom (nickname da user), num fórum de respostas online, partilhou que sempre que estava na biblioteca com os dois braços ocupados de livros, sentia uma vontade inadiável de responder ao seu intestino. “Parece que o meu cérebro tem uma reação psicológic­a que o faz pensar ’Espera, ela está mesmo a meio de algo que será difícil de interrompe­r. Oh, não! Não tens que fazer cocó, não tens que fazer cocó…’ que é o mesmo que não pensares num elefante cor-de-rosa, certo? (…)”. Certo. Mas isso é conversa para um artigo (sobre) n.º 2.

Agora vou para casa. Só vou ali fazer chichi, primeiro.

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