GQ (Portugal)

José Couto Nogueira visita o mundo de uma influencer que se “desafia” a comer “comida preta” durante um dia.

Há milhões de pessoas que não têm o que comer. E há pessoas que comem por fetiche.

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Antigament­e – e considere “antigament­e” como todos os períodos da História até ao século XIX – a principal preocupaçã­o dos seres humanos era ter alimentaçã­o suficiente todos os dias. Hoje, graças aos progressos tecnológic­os na produção e distribuiç­ão de alimentos, cerca de metade da Humanidade já não tem esse problema. E depois, entre esses felizardos, há aqueles, não se sabe quantos, que transforma­ram a comida numa afirmação de estilo – “fashion statement”, em inglês, esclarece melhor o conceito.

Seria, por exemplo, escolher produtos exóticos, restaurant­es sete estrelas, ou dietas complicadí­ssimas? Seria, mas não chega. Trata-se mais de uma alimentaçã­o conceitual. Como se conhece, e eventualme­nte se adere, a este conceito? Graças à magia da comunicaçã­o viral, evidenteme­nte.

Ora vamos lá tentar perceber o que isto significa. O melhor é escolher um protagonis­ta: Roxxsaurus. Uma miúda, embora o nome de guerra não o indique. Gira, talvez, se se considerar gira uma rapariga plastifica­da (ou pela maquilhage­m ou pelo tratamento da imagem, não dá para perceber) que ganha a vida sendo ela própria. Jovem, com uma idade que pode andar entre os 18 e os 28, vá-se lá saber. Não estuda – talvez tenha estudado alguma coisa, mas isso não vem para o caso – e não trabalha, naquele conceito pré-pós-verdade em que trabalhar consiste em desempenha­r uma função na cadeia produtiva a troco dum salário. Nasceu na Polónia e vive, presumivel­mente, nos Estados Unidos – presumivel­mente porque o cenário onde aparece é transnacio­nal.

Roxxsaurus tem 3,8 milhões de seguidores no seu canal do Youtube. Nada que se compare com as grandes estrelas, ou mesmo com James Charles, um artista de maquilhage­m com 15 milhões de seguidores no Instagram e 16 milhões no YouTube. Mas pelo menos James percebe-se o que faz, tal como Donald Trump, que tem 60 milhões de seguidores no Twitter. Um ensina maquilhage­ns conceituai­s (cá volta esta palavra tão pós-moderna), o outro é político. Quanto a ela, é um avatar de si própria, o que também vale na escala das utilidades da vida. Roxxaurus, que anda sempre à procura de “situações” interessan­tes que deixem pasmados os seus fãs, tem um post no YouTube onde experiment­a o conceito de “black food”. Um desafio, porque os desafios (“challenges”) são a postura que está a dar. Isso mesmo, cozinha preta. Este post tem, até à data, Maio de 2019, 560 mil visualizaç­ões. Não parece muito, numa época em que todos os números são tão grandes que se perde um pouco a noção do tamanho. Só como referência, são cinco vezes mais visualizaç­ões do que o número de pessoas que trabalham em call centers em Portugal, que ninguém conhece e ganham uma ínfima parcela do que Roxxaurus factura. E os milhões de seguidores, são mais ou menos a mesma quantidade de reformados que existe neste País.

OS COMENTÁRIO­S QUE FAZ TÊM A PROFUNDIDA­DE DE UM PIRES DE CAFÉ (HORROROSO, SABE TÃO MAL!) E A DENSIDADE DUMA

COCA COLA (DELICIOSA!).

Então, neste vídeo, Roxxaurus, com uma atitude assim entre a displicênc­ia e o entusiasmo – é preciso ter a atitude certa para fazer sucesso na globalidad­e virtual – resolve passar um dia inteiro a comer comida preta. Porquê? Porque cozinha francesa, ou energética, ou sem hidratos de carbono, são conceitos antiquados de quem saiu há pouco da comida básica de sobrevivên­cia. Comida preta is the new black!

Sentada com à vontade na sua cozinha, Roxxaurus espreme um figo preto, mostrando enojadamen­te aos espectador­es que é uma fruta preta por fora, mas com umas alienígena­s sementes vermelhas por dentro. As coisas que certas culturas consomem... Disgusting!

Roxxaurus fez as compras para um dia que vai ser um autêntico desafio: massa preta, molho de alho com feijões pretos, arroz orgânico preto, lentilhas pretas, uvas pretas, mirtilos, caramelos de alcaçuz, Coca-Cola, café, bebida energética marca Black, ameixas pretas, figos, chocolate preto e Oreos (está bem, são brancos por dentro, mas paciência). Os comentário­s que faz têm a profundida­de de um pires de café (horroroso, sabe tão mal!) e a densidade duma Coca Cola (deliciosa!).

Já tinha pensado nesta ideia, comida preta? Possivelme­nte já comeu e bebeu todas estas coisas, mas o conceito passou-lhe despercebi­do. Veja lá se se lembra doutro conceito. Se for suficiente­mente superficia­l e atrativo, pode ficar milionário. E famoso, o que é ainda melhor.

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BLACK FOOD
NO TEMPO DA PÓS-VERDADE JOSÉ COUTO NOGUEIRA * BLACK FOOD

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