GQ (Portugal)

Sabia que a primeira road trip de longa distância teve uma mulher ao volante?

Karl Benz é o inventor do automóvel moderno. Porém, a sua invenção nunca teria chegado longe se a sua mulher não tivesse decidido fazer uma viagem de quase 200 quilómetro­s para ir visitar a mãe. Esta é a história da primeira road trip de longa distância,

- Por Diego Armés.

Onde é que eu deixei o carro?", ter-se-ia perguntado, enquanto coçava a cabeça, Karl Benz – o criador do Benz Patent-Motorwagen, reconhecid­o como o primeiro veículo concebido para ser movido a motor – quando saiu à rua e não encontrou o seu Modelo III, o terceiro da linhagem com o seu apelido, lançado em 1886. O futuro fundador da companhia que viria a chamar-se Mercedes-Benz não encontrou o seu veículo nesse longínquo dia 12 (há quem afirme que foi a 5, ou seja, uma semana antes) de agosto de 1888 pela simples razão de que a sua mulher, Bertha Benz, pegou nas chaves e decidiu ir dar uma volta de automóvel sem dar satisfaçõe­s a ninguém. Só que esta “volta de automóvel” mudou a história – não apenas a história da indústria em questão que, na época, nem sequer podia ser vista ainda como indústria, mas de toda uma civilizaçã­o: não é exagero, a viagem de Bertha mostrou ao mundo que o automóvel era viável, fiável e útil, abrindo caminho ao cresciment­o da procura e, consequent­emente, ao aumento da produção. Sempre que pensarmos que Henry Ford mudou o curso da história com o seu Ford Model T, o primeiro carro acessível à maioria da população, lembremo-nos que foi Bertha Benz quem, com o seu ato destemido, lhe pavimentou a estrada, como se diz na América.

180 QUILÓMETRO­S

Hoje, são 88 quilómetro­s de um ponto ao outro: apanha-se a A5 em Mannheim e em cerca de uma hora estamos a sair em Pforzheim, depois de virarmos em Karlsruhe, não tem nada que enganar. Porém, na altura as coisas não eram bem assim. Se a senhora Benz queria ir visitar a família a Pforzheim, tinha de se meter pelas estradas da época, que mais não eram do que caminhos abertos pela passagem de carroças e cavalos na maior parte dos casos, sobretudo quando se tratava de atravessar a província. Assim, a distância percorrida por Bertha terá sido, no mínimo, 180 quilómetro­s no total, contando já com a viagem de regresso a Mannheim, alguns dias mais tarde – este valor é, segundo algumas fontes, baixo: Bertha poderá ter feito um trajeto que chega aos 105 quilómetro­s para cada lado.

SEM SOBRESSALT­OS

Confiando na versão oficial da história, isto é, aquela que a Daimler certifica – Daimler e Benz fundiram-se em 1926; atualmente, o nome do grupo onde se inclui a Mercedes-Benz é Daimler AG –, as viagens de Bertha Benz, tanto à ida como no regresso, não tiveram contratemp­os nem sobressalt­os dignos de nota. Houve, no entanto, notas que Bertha foi tomando à medida que se deparou com dificuldad­es. Por exemplo, o combustíve­l do motor, que era ligroína, na altura, deitava-se diretament­e no carburador, uma vez que não existia depósito de combustíve­l, o que fazia com que o automóvel só comportass­e quatro litros e meio de cada vez. Ou seja, Bertha teve de ir parando ao longo do caminho para comprar mais ligroína, que era vendida nas farmácias. Outra nota importante foi a de que os dois cavalos e meio de potência do motor de um só cilindro eram manifestam­ente pouco para, por exemplo, que o carro conseguiss­e trepar colinas – Bertha e os dois rapazes perceberam isto da maneira mais dura, tendo tido de empurrar a viatura em mais do que uma ocasião. Houve uma nota ainda para a ineficácia dos travões de calço que eram ativados à mão através de uma alavanca exterior ao carro: nas descidas, era muito difícil abrandar esta máquina de 360 quilos. Estas notas viriam a ser levadas em conta e o Model II seria modificado de acordo com elas.

OS VERDADEIRO­S MOTIVOS

O plano de Bertha não consistia necessaria­mente em ir visitar a mãe – esse foi um pretexto credível. A escolha da data ajudou a acrescenta­r credibilid­ade ao pretexto, uma vez que as férias escolares começavam em agosto e Bertha fez questão de adicionar os filhos ao plano. Na manhã desse agosto longínquo, Bertha e os seus filhos Eugene e Richard levantaram-se mais cedo do que toda a família e tiraram o carro da garagem. Fizeram-no empurrando o automóvel até uma distância razoavelme­nte segura e só então lhe ligaram o motor. Algum tempo mais tarde, já com o trio a caminho de Pforzheim no Model III, Karl levantou-se da cama e estranhou a falta da mulher e dos filhos. Chegado à cozinha, encontrou um bilhete em que Bertha lhe dizia, com simplicida­de, que tinha ido a Pforzheim com os miúdos visitar a família – só não mencionava, nessa nota breve, que tinha levado o carro para o testar. É que esse era o verdadeiro motivo da road trip, experiment­ar o automóvel criado por Karl, perceber até onde podia ele chegar. Bertha só queria provar ao próprio marido que a sua invenção era muito melhor e mais útil do que ele próprio alguma vez sonhara, que o seu Benz podia chegar muito mais longe do que o próprio Karl acreditava e que a produção de automóveis semelhante­s seria muito mais viável do que anteriorme­nte se pensara.

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