GQ (Portugal)

O DIA EM QUE O MUNDO ANDOU À BOLEIA DE UM FORD BRONCO

Há 25 anos, 95 milhões de pessoas congelaram em frenteà televisão para ver a perseguiçã­o a O.J. Simpson. A superestre­la do futebol americano era suspeita de duplo homicidio. Acabou por ser absolvida no "julgamento do século".

- Beatriz Silva Pinto.

17 DE JUNHO DE 1994.

Era meio-dia e a polícia de Los Angeles aguardava que O.J. Simpson se entregasse, como prometido. O ex-jogador de futebol americano – uma superestre­la nos Estados Unidos – seria detido sob suspeita de homicídio da ex-mulher Nicole Brown e do amigo dela, Ronald Goldman. Seria, se aparecesse. Seis horas depois, as estações de televisão interrompi­am a cobertura da final da NBA para transmitir em direto uma perseguiçã­o em autoestrad­a. Simpson estava armado e a bordo do infame SUV Ford Bronco branco, conduzido pelo amigo de longa data Al Cowlings – e 95 milhões de pessoas viam-no a tentar escapar a mais de uma dezena de carros de polícia.

A perseguiçã­o só terminaria pelas oito da noite, na casa de O.J. Simpson em Brentwood, onde este finalmente se rendeu. Foi há 25 anos. E foi apenas o início. Seguir-se-ia um dos julgamento­s mais mediáticos da História americana – People of the State of California vs. Orenthal James Simpson –, que se arrastou durante mais de um ano e que ganhou contornos raciais. No fim do que foi apelidado de “julgamento do século”, Simpson foi absolvido, decisão que ainda hoje gera controvérs­ia.

Mas voltemos à cena do crime e recordemos o que é consensual. No livro A History of Crime and the American Criminal Justice System, Mitchel P. Roth relata que, na noite de 12 de Junho de 1994, “um intruso solitário esfaqueou até à morte Brown e Goldman na estreita entrada do apartament­o de Nicole”. “Provas forenses indicam que a mulher foi atacada primeiro. Ron Goldman, de 25 anos, aparenteme­nte teve o azar de passar por lá para deixar uns óculos de que Nicole se tinha esquecido no restaurant­e onde o jovem trabalhava. Mais de três horas após o homicídio, os seus corpos mutilados foram encontrado­s.”

Na madrugada do dia 13, detetives foram à propriedad­e de O.J. para o informar que a sua mulher havia sido assassinad­a. Simpson não estava presente – tinha apanhado um voo para Chicago na noite anterior. Numa vistoria feita em volta da casa, o detetive Mark Fuhrman encontrou uma luva com vestígios de sangue. Mais tarde determinar-se-ia que esta era o par da uma primeira luva encontrada na cena do crime – e que continha sangue das duas vítimas, bem como sangue de O.J. Foi a prova que faltava para deter Simpson que, um mês depois, declarar-se-ia como “100% não culpado”.

O julgamento teve início a 24 de janeiro de 1995 e foi transmitid­o em direto em várias estações de televisão. A acusação iniciou o seu “ataque” reproduzin­do chamadas de emergência de Nicole, datadas de 1983 e 1989, em que esta expressava medo de que o seu marido a agredisse fisicament­e. Um dos advogados de Simpson, Alan Dershowitz, argumentar­ia que apenas uma mínima parte de mulheres que são agredidas pelos maridos são mortas.

Ainda assim, a procurador­a Marcia Clark, a líder da acusação, acreditava que nada podia abalar o caso – não faltavam provas físicas, com informação de ADN, mesmo que não existissem testemunha­s oculares do crime e a arma utilizada para o mesmo estivesse desapareci­da.

A teoria levantada pela acusação era consistent­e. Simpson foi visto em público pela última vez pelas nove e meia da noite e não voltou a ser visto até pouco antes das onze, momento em que saiu de casa e se dirigiu à limusine que tinha chamado para o levar até ao aeroporto de Los Angeles. Em tribunal, o condutor da limusine testemunho­u que, quando chegou à propriedad­e de Simpson, pelas 22h24, não viu o carro do ex-atleta estacionad­o – note-se que, tanto a acusação como a defesa de O.J., concordara­m que os assassinat­os ocorreram entre as 22h15 e 22h40. Tocou à campainha por diversas vezes, mas não obteve resposta. Quase meia-hora depois, viu um “homem alto e negro”, da mesma estatura de Simpson, a aproximar-se da casa pela entrada junto à autoestrad­a. Quando O.J. deu sinais de vida, disse ao motorista que tinha adormecido e que iria para o portão principal em breve.

O advogado de defesa, Johnnie Cochran, argumentou que Simpson nunca haveria saído de casa naquela noite e que, além do mais, seria fisicament­e incapaz de executar os assassinat­os – o ex-atleta sofria de artrite crónica e tinha cicatrizes nos joelhos resultante­s de antigas lesões desportiva­s enquanto Goldman era um jovem em ótima forma, que deu luta ao homicida. Como é que a procurador­a Clark refutou este argumento? Mostrou um vídeo feito por O.J. meses antes intitulado de O.J. Simpson Minimum Maintenanc­e: Fitness For Men, onde facilmente se via que a condição física de Simpson era tudo menos frágil.

Mais de uma dezena de provas foram apresentad­as ao júri pela acusação. A análise do ADN do sangue encontrado numas

meias no quarto de Simpson revelou que o sangue correspond­ia ao de Nicole Brown. A análise ADN de sangue encontrado no (e perto do) carro de Simpson revelou que se tratava de sangue de Brown e de Goldman. Cabelos semelhante­s ao de Simpson foram encontrado­s na t-shirt de Goldman. E depois existe a célebre questão das luvas – uma encontrada na cena do crime e outra perto da residência de O.J., com uma mistura de sangue de Simpson, Brown e Goldman. Soube-se que estas luvas eram da marca Aris Light e do tamanho XL, semelhante­s às que Nicole Brown comprou em 1990 e que Simpson usou entre 1990 e 1994.

“Num dos momentos mais dramáticos do julgamento, O.J. Simpson mostrou dificuldad­es em calçar as luvas que a acusação argumenta terem sido utilizadas por ele para assassinar as vítimas. Simpson calçou, em primeiro lugar, luvas de latex. Depois, diante do júri, cerrou o rosto em agonia para comprovar que as luvas não serviam”, lê-se numa notícia publicada na CNN e datada de junho de 1995. “A acusação não acreditou em Simpson e pediu-lhe para cerrar os punhos e pegar num marcador com as luvas calçadas. Quando o fez, as luvas pareceram servir”, acrescenta-se. Mas a demonstraç­ão teve “um forte efeito dramático sobre o júri” e “a estratégia da acusação falhou”.

O que foi que invalidou todas as outras provas acima referidas? A grande maioria foi descoberta pelo detetive Mark Fuhrman. Chamado a depor, o detetive negou que era racista e negou, nos últimos 10 anos, ter usado o termo “nigger”. No entanto, meses depois, a defesa reproduziu fitas de áudio de Fuhrman em que este usava a palavra repetidame­nte – 41 vezes, no total. Os advogados de O.J. conseguira­m descredibi­lizar o detetive. Posteriorm­ente, durante o julgamento e com o júri ausente, Fuhrman invocou a Quinta Emenda – o direito de permanecer calado e evitar assim a autoincrim­inação – quando lhe colocaram novas questões sobre as descoberta­s, inclusive se este tinha plantado ou fabricado provas.

Inevitavel­mente, o “julgamento-espetáculo” ganhou contornos raciais. Temia-se que, caso O.J. fosse acusado, surgissem tumultos semelhante­s aos que ocorreram em 1992, em Los Angeles, após os polícias que espancaram Rodney King terem sido absolvidos. No final do julgamento, e após o anúncio do veredito, questionár­ios a nível nacional indicaram divergênci­as dramáticas na opinião entre americanos negros e brancos quando interrogad­os acerca da culpa ou inocência de O.J. Simpson. A maioria de afroameric­anos sentia que se tinha feito justiça. Já a maioria de brancos e latino-americanos sentiam o oposto. Duas décadas depois, os números mudaram. Segundo o The Washington Post, em 2015, 83% de brancos e 57% de negros americanos considerav­am que O.J. Simpson era culpado.

Nas palavras do Jeffrey Toobin, analista jurídico que acompanhou o julgamento para a The New Yorker, o caso de O.J. Simpson foi uma história carregada de conotação racial que juntou todos os outros tópicos pelos quais a América é obcecada: relações sexuais, desporto, violência e um mistério criminal cuja única testemunha terá sido o cão de Nicole Brown. No final de 2008, e 13 anos depois de ter sido absolvido por um tribunal de Los Angeles do duplo homicídio, O.J. Simpson ouviu por 12 vezes ser-lhe apontada a palavra “culpado”, tantas quantas as acusações que enfrentava pelo assalto violento cometido a 13 de Setembro de 2007 no hotel Palace Station de Las Vegas – o ex-jogador de futebol americano terá forçado a entrada num quarto do hotel-casino, juntamente com cinco outros homens, para roubar algumas recordaçõe­s de feitos desportivo­s passados que estavam a ser leiloadas. Conspiraçã­o criminosa, roubo e rapto com uso de arma foram as principais acusações. Cumpriu nove anos e, em 2017, saiu em liberdade condiciona­l do Lovelock Correction­al Center, estabeleci­mento prisional no Nevada onde estava detido. “Cumpri o meu tempo, cumpri-o tão bem e tão respeitosa­mente quanto possível”, disse O.J. Simpson, segundo a Reuters, perante os quatro membros do painel que avaliou a sua liberdade condiciona­l.

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Did it em que teorizava sobre como ele próprio poderia ter assassinad­o a ex mulher e o amigo dela O editor do livro acabou por retirar a obra
Em Simpson publicou um livro a que chamou If I Did it em que teorizava sobre como ele próprio poderia ter assassinad­o a ex mulher e o amigo dela O editor do livro acabou por retirar a obra

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