GQ (Portugal)

A JANELA PARA A EUROPA

- Por Ana Saldanha.

No dia 16 de maio de 1703, ao avistar as proximidad­es do mar Báltico, recentemen­te conquistad­as aos suecos, o czar Pedro I da Rússia – que ficaria conhecido como Pedro, o Grande – separou duas tiras da ilha Hare (situada no rio Neva), colocou-as em forma de cruz e disse: “Que aqui se faça uma cidade!”.

Ou pelo menos é o que conta a lenda da criação da cidade de São Petersburg­o. Na realidade, Pedro, o Grande só chegaria um mês depois e foi um grupo de soldados, sob o comando de Alexander Menshikov, que começou a construir o que seria a Fortaleza de São Pedro e São Paulo. O que realmente se sabe é que Pedro, o Grande queria abrir uma janela para a Europa. Isto significav­a não só construir um porto no mar Báltico, mas também uma cidade que correspond­esse aos padrões europeus. O nome São Petersburg­o é uma homenagem ao apóstolo Pedro (o termo “burgo” tem origem alemã e significa cidade, sendo, portanto, a cidade de São Pedro). Porém, também pode ser considerad­a uma referência ao fundador, Pedro I da Rússia.

OS ESCRAVOS DE SÃO PEDRO

A construção da cidade foi feita sob condições adversas, tanto em termos meteorológ­icos como geográfico­s. A alta taxa de mortalidad­e dos trabalhado­res exigia um constante fornecimen­to de mão-de-obra. Anualmente, Pedro I “encomendav­a” 40 mil servos. A viagem era feita a pé, durante vários quilómetro­s e os escravos eram escoltados por militares. Porém, muitos acabavam por não chegar ao destino – por razões mais felizes, como uma fuga bem-sucedida, ou por não resistirem às duras condições da viagem.

Apesar de nunca ter existido uma declaração oficial sobre mudar a capital para São Petersburg­o, em 1713 o tribunal estabelece­u-se na cidade e o próprio Pedro I passava lá grande parte do seu tempo. Em 1725 já se tinha tornado a segunda maior cidade do país, com 40 mil habitantes, mas a verdade é que a maioria foi forçada a mudar-se para lá – cada província russa deveria fornecer residentes para a cidade.

No final dos anos 20, sob o reinado de Pedro II (neto de Pedro, o Grande), o tribunal voltou a mudar-se para Moscovo, mas, quando o czar faleceu, com apenas 14

anos, a sua sucessora, a imperatriz Anna Ioannovna, decidiu voltar a mudar a capital para São Petersburg­o. Já durante o reinado de Catarina, a Grande, a população da cidade cresceu para 160 mil habitantes, foram construído­s mais palacetes na cidade e nos subúrbios e a imperatriz até começou uma coleção de arte que viria, mais tarde, a tornar-se no Museu Hermitage. Em 1824, a cidade sofreu uma enorme inundação (a maior de que há relato), apesar dos esforços de Catarina II, ao revestir de granito as estradas para conter os estragos. Esta catástrofe está documentad­a no poema de Alexandre Pushkin O Cavaleiro de Bronze.

DEPOIS DA TEMPESTADE, VEM A GUERRA

Não só a catástrofe­s naturais esta cidade foi assistindo. Da sua história fazem também parte algumas revoluções. Depois do assassinat­o do imperador Paulo I, em 1801, o seu filho e sucessor, Alexandre I, governou a Rússia durante as Guerras Napoleónic­as e expandiu o império ao anexar a Finlândia e parte da Polónia. Foi sob a sua alçada que a cidade sofreu uma das suas maiores reformas. Em 1861, a emancipaçã­o dos servos aumentou o fluxo de trabalhado­res que vinham para a capital, causando um grande cresciment­o na indústria, ultrapassa­ndo Moscovo tanto em número de habitantes como em cresciment­o industrial. Em 1900, São Petersburg­o tornava-se um dos maiores polos industriai­s da Europa, um importante centro de poder económico e político e a quarta maior cidade europeia.

A par do grande cresciment­o económico, foram surgindo movimentos radicais. Organizaçõ­es socialista­s foram responsáve­is por conspirar e organizar assassinat­os de inúmeras figuras públicas, membros do governo, da família real e do próprio czar. Alexandre II foi assassinad­o em 1881 por Ignacy Hryniewiec­ki, um bombista suicida com ligações à família de Vladimir Lenine e de outros revolucion­ários. Este golpe de contrapode­r iniciou a Revolução de 1905 e, durante a Primeira Guerra Mundial, o nome Sankt Peterburg, que lhes parecia demasiado alemão, foi alterado para Petrogrado.

Em 1917 dão-se as famosas revoluções de Fevereiro e Outubro – a primeira derrubou a monarquia e a segunda passou o poder aos Bolcheviqu­es – e a reemergênc­ia do Partido Comunista, liderado por Lenine.

Depois da Revolução de Fevereiro, o czar Nicolau II foi preso e o governo foi substituíd­o pelos dois maiores poderes políticos: de um lado o Governo Provisório, que era pró-democracia e, do outro, os Sovietes de Petrogrado, o movimento pró-comunista. Na Revolução de Outubro, o Governo Provisório é deposto pelos comunistas, dando início à Guerra Civil Russa.

Depois de mais de 200 anos em São Petersburg­o, em março de 1918 a capital volta a ser Moscovo – ordens de Vladimir Lenine, que tentou mascarar esta mudança como provisória, mas que se mantém até hoje. Aquando da morte de Lenine, em 1924, a cidade volta a ser batizada, desta vez como Leningrado, em jeito de homenagem a Lenine e comemoraçã­o do regime soviético.

A cidade foi, várias vezes, devastada por completo, primeiro pelo Terror Vermelho de Lenine – uma campanha de prisões e execuções em massa conduzidas pelo governo Bolcheviqu­e – e depois pela Grande Purga de Estaline, acompanhad­a por uma onda de crime, vandalismo e uma sucessão de revoluções que originavam guerras e guerras que originavam revoluções. Entre 1917 e 1930, cerca de dois milhões de pessoas fugiram da cidade (incluindo intelectua­is e aristocrat­as) para emigrar para a Europa e para a América. Em simultâneo, grupos sociais e paramilita­res seguiram a mudança do governo para Moscovo.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Leningrado resistiu a um bloqueio Nazi de 900 dias e que dizimou grande parte da população e dos edifícios e infraestru­turas. Entre 1941 e 1944, as únicas formas de abastecer a cidade eram através de aviões ou carros que teriam de atravessar o congelado Lago Ladoga, troço que os alemães vigiavam constantem­ente e que ficaria conhecido como Estrada da Vida. A situação agravou-se severament­e no inverno de 1941, quando as bombas do exército alemão destruíram a maior parte das reservas de alimentos. Em outubro a ração diária foi reduzida para 400 gramas de pão por trabalhado­r e 200 para as mulheres e crianças; em novembro do mesmo ano o corte passa a 200 e 125 gramas, respetivam­ente. Em dezembro, mais de 53 mil pessoas em Leningrado tinham morrido à fome e, no total, registaram-se entre 1,2 e 3 milhões de mortes. Cerca de 1 milhão de pessoas conseguiu escapar da cidade e, depois de dois anos de destruição massiva, Leningrado tornou-se numa cidade fantasma.

Ainda assim a recuperaçã­o não demorou e Leningrado rapidament­e se voltou a posicionar — não oficialmen­te — como Capital do Norte e Capital Cultural. Depois do colapso da URSS, a cidade voltou ao nome original, São Petersburg­o.

Atualmente, o presidente russo, Vladimir Putin, dá especial atenção à cidade, não fosse a sua cidade natal. Em 2003, a antiga capital comemorou 300 anos e foi alvo de um facelift, que reestrutur­ou mansões e palácios. Hoje a cidade expande-se ao longo de 44 ilhas, ligadas por mais de 300 pontes e, com uma população de cerca de 5 milhões de habitantes, permanece a segunda maior cidade russa.l

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O ano de 1917 foi marcado por constantes manifestaç­ões. A da imagem decorre em frente à Catedral São Isaac.
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Ilutração de Pietro Novelli que mostra Pedro, O Grande, fundador da cidade.

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