a literatura sobre o futuro que ninguém quer
Tal como a música All My Loving, dos Beatles, ou a pintura da Mona Lisa, o livro 1984 é uma obra que toda a gente conhece, ou pelo menos ouviu falar. Mas na literatura há outras distopias que merecem a mesma atenção que o livro de Orwell. As distopias estão na moda e muitas têm sido publicadas nos últimos anos. Se se realizarão, não sabemos. Mas, lendo as que foram publicadas nas últimas décadas, podemos fazer um exercício mais interessante: ver se o futuro que se imaginava no passado está a acontecer no presente.
Distopia é uma palavra que entrou há pouco no vocabulário corrente, mas na verdade é um conceito bastante simples: o contrário de utopia. Se a utopia representa o paraíso sonhado, a distopia é o paraíso perdido. O futuro que ninguém deseja e que alguns receiam que já tenha começado, ou esteja em vias de começar. A Utopia começou por ser uma ilha inventada por Thomas More, em 1516, onde existia uma sociedade perfeita. A palavra quer dizer “parte alguma”, mas ficou a partir daí ligada a soluções políticas e sociais ideais. Há até uma corrente chamada “socialista utópica”, apresentada por Marx, mas definida de outra maneira – melhor – pelo economista francês Saint--Simon. Utopia passou a representar uma ideia maravilhosa e, presumivelmente, impossível de realizar.
Quanto às distopias, as primeiras aparecem no século XIX, como resposta às utopias. Em 1887, a esquecida escritora americana Anna Bowman Dodd publicou A República do Futuro, uma sociedade equalitária e muito infeliz, em que as crianças são educadas pelo Estado, há igualdade de género e o trabalho é feito por máquinas. As pessoas, sem nada para fazer, passam o tempo no ginásio, obcecadas pela aparência física. Não estava muito longe da realidade, não é verdade? Enquanto os utópicos veem a comunidade em que o trabalho é feito por máquinas como uma oportunidade de lazer permanente, os distópicos percebem que gera uma sociedade de desempregados.
Foi H.G. Wells, ao “inventar” a máquina do tempo, que proporcionou a si próprio e a outros autores a possibilidade de ir ao futuro – um futuro em que amiúde as promessas da tecnologia e dos visionários optimistas deram para o torto. A questão essencial – havendo outras – é que uma utopia pressupõe uma sociedade planificada, contendo no seu próprio conceito o germe da distopia. Foi esta percepção que levou a obras como Nós, do russo Yevgeny Zamyatin (1924), Anthem, de Ayn Rand (1937), ou Matadoro Cinco, de Kurt Vonnegut (1969), para citar apenas algumas quase esquecidas. Mas há outras cujo impacto ainda se faz sentir: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), Isso não pode acontecer aqui, de Sinclair Lewis (1935), Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (1962), ou A História de uma Serva, de Margaret Atwood (1985). Os livros de Burgess e Bradbury ainda tiveram maior divulgação por causa dos filmes homónimos de Kubrick (1971) e de Truffaut (1966); e a distopia duma sociedade de mulheres inferiores e reprodutoras de Atwood está a ser acompanhada por milhões numa série produzida e escrita por Bruce Miller que vai agora na terceira temporada. Sobre ela, Volker Schlöndorff fez um filme, em 1990.
Convém não confundir distopia com ficção científica. Ambas falam do futuro, ou de uma sociedade alienígena, mas a distopia é sobre política e não tecnologia. Com certeza que a antecipação faz pressupor um mundo tecnologicamente diferente – em princípio, mais avançado –, mas o essencial da mensagem é a situação política e social, não os gadgets que a permitiram.
distopias dão que pensar
As distopias levantam duas considerações. Uma, evidentemente, é se os perigos que preveem são mesmo possíveis. A outra, é se não se estão já a tornar realidade. O “contrato social” entre os homens está sempre em perigo; não existe um percurso linear da escravatura para a liberdade. As sociedades avançam e recuam; o Império Romano, por exemplo, passou da República para a tirania com o consentimento geral. E nem sequer existe um consenso entre o que é melhor ou pior; pois não há sempre quem defenda a ditadura e as autocracias como a felicidade dos cidadãos?
Orwell escreveu sobre uma sociedade ditatorial onde as pessoas, infelizes, são submetidas a uma repressão e lavagem cerebral que as leva a viver numa realidade paralela. Há sempre um inimigo a justificar todos os sofrimentos. É sabido, até porque ele o disse, que se inspirou na União Soviética de Estaline e na Alemanha de Hitler. Portanto, é um futuro inventado que foi presente muito real num determinado contexto. E ainda existe, pelo menos na Coreia do Norte. Também está em perigo de existir nas Filipinas e na Turquia, entre outros. Contudo, a sociedade completamente encapuçada e micro dirigida de Orwell não parece ser a previsão mais certeira; mesmo nas autocracias em crescimento existe uma tentativa de mostrar que o povo é que decidiu pela autodisciplina. Essa atitude é mostrada em 1984 pela subversão do significado das palavras, que está a ocorrer em todo o mundo. Os slogans do Big Brother são “A guerra é paz”, “A liberdade é escravatura” e “A ignorância é força”. O que não deixa de acontecer aqui e ali. É comum os governos fazerem guerra a terceiros para manter a paz dentro do país. A escravatura, ou pelo menos a submissão à ordem instituída, dá a liberdade de não ter de pensar em soluções alternativas à ordem instituída. E ainda há pouco Rudolph Giuliani, advogado de Trump, afirmou na televisão que “A verdade não é verdadeira” (“Truth is not the truth”) sem ser desmentido pelo entrevistador. A ignorância do que é a verdade dá força às convicções.
Convém não confundir distopia com ficção científica (...). A distopia é sobre política e não tecnologia.
as distopias possíveis
Mais próximo daquilo que hoje achamos possível, ou mesmo existente, é o domínio pela indiferença, o tema de Não pode acontecer aqui, de Sinclair Lewis. Passa-se nos Estados Unidos, numa situação em que as eleições levam ao poder Berzelius "Buzz" Windrip, um déspota com um discurso divertido e otimista, que usa as omissões e imprecisões da Constituição para criar um totalitarismo que as pessoas veem como bom-senso. Desde que não se metam em política e possam consumir à vontade, não se interessam pelos conluios e amiguismos dos que repartem o poder. É a sociedade que abdica dos seus direitos, amolecida pelo bem-estar. Como diziam os esquecidos “Homens da Luta”: “E o povo? O povo quer é comprar um carro novo!”
Do mesmo modo, a Grã-Bretanha imaginada por Burgess na Laranja Mecânica também vive numa paz podre em que as necessidades básicas e até alguns devaneios são permitidos, a troco da indiferença. Burgess imagina que esta situação leva ao aparecimento de gangs de rapazes que, sem necessidade de trabalhar ou interessar-se por coisas sérias, se dedicam à “ultraviolência”. Para esses, o Estado tem métodos científicos para os acalmar, com um condicionamento pavloviano. “O que eu queria mostrar”, disse ele numa entrevista ao New York Times, “é que é melhor ser mau por livre vontade do que ser bom através duma lavagem cerebral”. A violência gratuita, praticada em pequenos grupos ou dentro dos círculos de amizades, é uma realidade atual, não precisamos de esperar pelo futuro. Burgess mostra também um exibicionismo sexual e uma ligação da sensualidade à brutalidade que não é estranha para quem frequente as redes sociais preferidas dos adolescentes.
a hipnose da iliteracia
A indiferença é também o fluido que percorre as veias de Fahrenheit 451. As pessoas estão proibidas de ler, mas isso não lhes causa nenhum problema, porque não querem ler; preferem ver televisão interativa, imersas em ecrãs gigantescos que preenchem todas as paredes da casa. Mildred, a esposa do protagonista, Montag, completamente programada pelo sistema, não se interessa por nada a não ser pelas vacuidades que passam no ecrã e nem percebe que a interatividade que usa o nome dela para lhe fazer perguntas é um algoritmo. Beatty, o chefe dos bombeiros, um vilão que em tempos leu todos os clássicos, explica a Montag como se chegou à presente situação: “A proibição dos livros não veio de cima, do Governo. Para começar não houve nenhum decreto, direção, censura, não senhor! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias fizeram a coisa, Deus os abençoe. Hoje, graças a eles, uma pessoa pode ser sempre feliz. (...) Com as escolas a produzir cada vez mais corredores, saltadores, atletas, oportunistas, ladrões, aviadores e nadadores, em vez de examinadores, críticos, conhecedores, e criadores imaginativos, a palavra “intelectual” tornou-se no insulto que merece ser. Receamos sempre o que não conhecemos. Você, Montag, lembra-se do miúdo na sua turma que era excecionalmente brilhante, que dava sempre as respostas certas e lia tudo, enquanto os outros ficavam sentados como parvos, a odiá-lo? Não era esse miúdo brilhante que vocês escolhiam para apa
É a sociedade que abdica dos seus direitos, amolecida pelo bem-estar. Como diziam os “Homens da Luta”: “E o povo? O povo quer é comprar um carro novo!”
nhar e ser torturado no recreio? Claro que era! Temos de ser todos iguais. Não todos nascidos livres e iguais, como diz a Constituição, mas feitos iguais. Cada homem é a imagem do outro; assim ficam todos felizes, não há obstáculos que os assustem, que os façam avaliar-se. Pois claro! Um livro é uma arma engatilhada na casa do vizinho. Queimemo-lo. Tiremos a bala da arma. Rebentemos com a cabeça do homem. Quem sabe qual é o alvo dum homem bem letrado?”
Este expressionismo literário não é mais do que a atitude do homem comum nos dias que correm. Numa viagem de metro, quantas pessoas estão a ler e quantas jogam as versões tridimensionais do Tetris? Claro que proibir livros é sempre mal visto, mas não custa pensar numa situação em que os livros simplesmente se vendem tão pouco que tanto faz. Uma história esquecida, de 1964: quando perguntaram a um general brasileiro porque é que a ditadura militar não censurava os jornais (não censurava, mas prendia os jornalistas) e controlava a televisão, respondeu: “Quem é que lê o Estado de São Paulo? (o maior e melhor jornal da época) Tem uma tiragem de cem mil exemplares, lidos por intelectuais. Agora, um noticiário de televisão é visto por milhões de pessoas, pelo povo. A televisão é que é importante.” Isto, em 1964, ainda a televisão tinha poucos canais e não havia redes sociais com outros milhões de opinadores. Controlar a televisão, que fornece a alegria dos espetáculos inconsequentes e estimula o consumo de inutilidades indispensáveis, é muito mais importante do que amordaçar os chatos dos intelectuais – há sempre uma meia dúzia deles, em qualquer momento, e os governos modernos sabem que calá-los dá mau aspeto e não os extingue.
humanos feitos à medida
Admirável Mundo Novo é outro tipo de distopia em vias de realização. O segredo do controlo está na genética. Na sociedade imaginada por Aldous Huxley os genes são programados em fábricas de Incubação e Condicionamento de modo a obter bebés com características e uma vocação natural para determinadas tarefas. Assim, é possível equilibrar a quantidade de pessoas para as funções necessárias da sociedade e evitar o desemprego. Muito naturalmente, há seres inferiores – que foram gerados para as tarefas menos gratificantes – e seres superiores, de vários escalões. Os inferiores são um pouco aparvalhados, porque o que fazem não exige grande inteligência, mas também são tranquilos. Não têm ambições perturbadoras, apenas fazer bem o que fazem. É preciso a todo o custo manter o moto do Governo Mundial: “Comunidade, Identidade, Estabilidade”.
Neste momento já são possíveis algumas destas manipulações, para além do estágio em que a única possibilidade era escolher um pai, ou uma mãe, com características físicas e mentais ideais. A inseminação artificial é corriqueira; têm aparecido notícias de certas modificações genéticas em fase experimental. Uma manipulação total está à vista, e só podemos imaginar o que os laboratórios secretos militares farão com ela. Certamente que há anos fazem experiências de clonagem; se não sabemos é porque a repercussão não seria muito boa, ou simplesmente porque ainda não conseguiram resultados satisfatórios.
apocalíptico não é distópico
O cinema, ao contrário da literatura, está cheio de histórias apocalípticas. Há séries e filmes, alguns de grande qualidade. A escolha do cinema como meio preferencial justifica-se porque em imagens é muito mais impressionante ver os extraordinários efeitos especiais que hoje são comuns. Mas os temas andam geralmente em volta de duas situações: uma pós-catastrófica (a civilização foi destruída, só ficaram alguns), ou um cenário espacial, numa galáxia distante ou civilização diferente. Embora possam ter conotações políticas – seria o caso da série Guerra dos Tronos – não podem ser considerados distopias, uma vez que partem dum acontecimento que pode não acontecer – a catástrofe – ou situam-se em mundos imaginários. A distopia é uma situação concreta obtida pela evolução “natural”, digamos assim, da realidade. Na verdade, uma distopia não é ficção, é um aviso.
As pessoas estão proibidas de ler, mas isso não lhes causa nenhum problema, porque não querem ler; preferem ver televisão interativa.