GQ (Portugal)

a literatura sobre o futuro que ninguém quer

- Por José Couto Nogueira.

Tal como a música All My Loving, dos Beatles, ou a pintura da Mona Lisa, o livro 1984 é uma obra que toda a gente conhece, ou pelo menos ouviu falar. Mas na literatura há outras distopias que merecem a mesma atenção que o livro de Orwell. As distopias estão na moda e muitas têm sido publicadas nos últimos anos. Se se realizarão, não sabemos. Mas, lendo as que foram publicadas nas últimas décadas, podemos fazer um exercício mais interessan­te: ver se o futuro que se imaginava no passado está a acontecer no presente.

Distopia é uma palavra que entrou há pouco no vocabulári­o corrente, mas na verdade é um conceito bastante simples: o contrário de utopia. Se a utopia representa o paraíso sonhado, a distopia é o paraíso perdido. O futuro que ninguém deseja e que alguns receiam que já tenha começado, ou esteja em vias de começar. A Utopia começou por ser uma ilha inventada por Thomas More, em 1516, onde existia uma sociedade perfeita. A palavra quer dizer “parte alguma”, mas ficou a partir daí ligada a soluções políticas e sociais ideais. Há até uma corrente chamada “socialista utópica”, apresentad­a por Marx, mas definida de outra maneira – melhor – pelo economista francês Saint--Simon. Utopia passou a representa­r uma ideia maravilhos­a e, presumivel­mente, impossível de realizar.

Quanto às distopias, as primeiras aparecem no século XIX, como resposta às utopias. Em 1887, a esquecida escritora americana Anna Bowman Dodd publicou A República do Futuro, uma sociedade equalitári­a e muito infeliz, em que as crianças são educadas pelo Estado, há igualdade de género e o trabalho é feito por máquinas. As pessoas, sem nada para fazer, passam o tempo no ginásio, obcecadas pela aparência física. Não estava muito longe da realidade, não é verdade? Enquanto os utópicos veem a comunidade em que o trabalho é feito por máquinas como uma oportunida­de de lazer permanente, os distópicos percebem que gera uma sociedade de desemprega­dos.

Foi H.G. Wells, ao “inventar” a máquina do tempo, que proporcion­ou a si próprio e a outros autores a possibilid­ade de ir ao futuro – um futuro em que amiúde as promessas da tecnologia e dos visionário­s optimistas deram para o torto. A questão essencial – havendo outras – é que uma utopia pressupõe uma sociedade planificad­a, contendo no seu próprio conceito o germe da distopia. Foi esta percepção que levou a obras como Nós, do russo Yevgeny Zamyatin (1924), Anthem, de Ayn Rand (1937), ou Matadoro Cinco, de Kurt Vonnegut (1969), para citar apenas algumas quase esquecidas. Mas há outras cujo impacto ainda se faz sentir: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), Isso não pode acontecer aqui, de Sinclair Lewis (1935), Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (1962), ou A História de uma Serva, de Margaret Atwood (1985). Os livros de Burgess e Bradbury ainda tiveram maior divulgação por causa dos filmes homónimos de Kubrick (1971) e de Truffaut (1966); e a distopia duma sociedade de mulheres inferiores e reprodutor­as de Atwood está a ser acompanhad­a por milhões numa série produzida e escrita por Bruce Miller que vai agora na terceira temporada. Sobre ela, Volker Schlöndorf­f fez um filme, em 1990.

Convém não confundir distopia com ficção científica. Ambas falam do futuro, ou de uma sociedade alienígena, mas a distopia é sobre política e não tecnologia. Com certeza que a antecipaçã­o faz pressupor um mundo tecnologic­amente diferente – em princípio, mais avançado –, mas o essencial da mensagem é a situação política e social, não os gadgets que a permitiram.

distopias dão que pensar

As distopias levantam duas consideraç­ões. Uma, evidenteme­nte, é se os perigos que preveem são mesmo possíveis. A outra, é se não se estão já a tornar realidade. O “contrato social” entre os homens está sempre em perigo; não existe um percurso linear da escravatur­a para a liberdade. As sociedades avançam e recuam; o Império Romano, por exemplo, passou da República para a tirania com o consentime­nto geral. E nem sequer existe um consenso entre o que é melhor ou pior; pois não há sempre quem defenda a ditadura e as autocracia­s como a felicidade dos cidadãos?

Orwell escreveu sobre uma sociedade ditatorial onde as pessoas, infelizes, são submetidas a uma repressão e lavagem cerebral que as leva a viver numa realidade paralela. Há sempre um inimigo a justificar todos os sofrimento­s. É sabido, até porque ele o disse, que se inspirou na União Soviética de Estaline e na Alemanha de Hitler. Portanto, é um futuro inventado que foi presente muito real num determinad­o contexto. E ainda existe, pelo menos na Coreia do Norte. Também está em perigo de existir nas Filipinas e na Turquia, entre outros. Contudo, a sociedade completame­nte encapuçada e micro dirigida de Orwell não parece ser a previsão mais certeira; mesmo nas autocracia­s em cresciment­o existe uma tentativa de mostrar que o povo é que decidiu pela autodiscip­lina. Essa atitude é mostrada em 1984 pela subversão do significad­o das palavras, que está a ocorrer em todo o mundo. Os slogans do Big Brother são “A guerra é paz”, “A liberdade é escravatur­a” e “A ignorância é força”. O que não deixa de acontecer aqui e ali. É comum os governos fazerem guerra a terceiros para manter a paz dentro do país. A escravatur­a, ou pelo menos a submissão à ordem instituída, dá a liberdade de não ter de pensar em soluções alternativ­as à ordem instituída. E ainda há pouco Rudolph Giuliani, advogado de Trump, afirmou na televisão que “A verdade não é verdadeira” (“Truth is not the truth”) sem ser desmentido pelo entrevista­dor. A ignorância do que é a verdade dá força às convicções.

Convém não confundir distopia com ficção científica (...). A distopia é sobre política e não tecnologia.

as distopias possíveis

Mais próximo daquilo que hoje achamos possível, ou mesmo existente, é o domínio pela indiferenç­a, o tema de Não pode acontecer aqui, de Sinclair Lewis. Passa-se nos Estados Unidos, numa situação em que as eleições levam ao poder Berzelius "Buzz" Windrip, um déspota com um discurso divertido e otimista, que usa as omissões e imprecisõe­s da Constituiç­ão para criar um totalitari­smo que as pessoas veem como bom-senso. Desde que não se metam em política e possam consumir à vontade, não se interessam pelos conluios e amiguismos dos que repartem o poder. É a sociedade que abdica dos seus direitos, amolecida pelo bem-estar. Como diziam os esquecidos “Homens da Luta”: “E o povo? O povo quer é comprar um carro novo!”

Do mesmo modo, a Grã-Bretanha imaginada por Burgess na Laranja Mecânica também vive numa paz podre em que as necessidad­es básicas e até alguns devaneios são permitidos, a troco da indiferenç­a. Burgess imagina que esta situação leva ao aparecimen­to de gangs de rapazes que, sem necessidad­e de trabalhar ou interessar-se por coisas sérias, se dedicam à “ultraviolê­ncia”. Para esses, o Estado tem métodos científico­s para os acalmar, com um condiciona­mento pavloviano. “O que eu queria mostrar”, disse ele numa entrevista ao New York Times, “é que é melhor ser mau por livre vontade do que ser bom através duma lavagem cerebral”. A violência gratuita, praticada em pequenos grupos ou dentro dos círculos de amizades, é uma realidade atual, não precisamos de esperar pelo futuro. Burgess mostra também um exibicioni­smo sexual e uma ligação da sensualida­de à brutalidad­e que não é estranha para quem frequente as redes sociais preferidas dos adolescent­es.

a hipnose da iliteracia

A indiferenç­a é também o fluido que percorre as veias de Fahrenheit 451. As pessoas estão proibidas de ler, mas isso não lhes causa nenhum problema, porque não querem ler; preferem ver televisão interativa, imersas em ecrãs gigantesco­s que preenchem todas as paredes da casa. Mildred, a esposa do protagonis­ta, Montag, completame­nte programada pelo sistema, não se interessa por nada a não ser pelas vacuidades que passam no ecrã e nem percebe que a interativi­dade que usa o nome dela para lhe fazer perguntas é um algoritmo. Beatty, o chefe dos bombeiros, um vilão que em tempos leu todos os clássicos, explica a Montag como se chegou à presente situação: “A proibição dos livros não veio de cima, do Governo. Para começar não houve nenhum decreto, direção, censura, não senhor! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias fizeram a coisa, Deus os abençoe. Hoje, graças a eles, uma pessoa pode ser sempre feliz. (...) Com as escolas a produzir cada vez mais corredores, saltadores, atletas, oportunist­as, ladrões, aviadores e nadadores, em vez de examinador­es, críticos, conhecedor­es, e criadores imaginativ­os, a palavra “intelectua­l” tornou-se no insulto que merece ser. Receamos sempre o que não conhecemos. Você, Montag, lembra-se do miúdo na sua turma que era excecional­mente brilhante, que dava sempre as respostas certas e lia tudo, enquanto os outros ficavam sentados como parvos, a odiá-lo? Não era esse miúdo brilhante que vocês escolhiam para apa

É a sociedade que abdica dos seus direitos, amolecida pelo bem-estar. Como diziam os “Homens da Luta”: “E o povo? O povo quer é comprar um carro novo!”

nhar e ser torturado no recreio? Claro que era! Temos de ser todos iguais. Não todos nascidos livres e iguais, como diz a Constituiç­ão, mas feitos iguais. Cada homem é a imagem do outro; assim ficam todos felizes, não há obstáculos que os assustem, que os façam avaliar-se. Pois claro! Um livro é uma arma engatilhad­a na casa do vizinho. Queimemo-lo. Tiremos a bala da arma. Rebentemos com a cabeça do homem. Quem sabe qual é o alvo dum homem bem letrado?”

Este expression­ismo literário não é mais do que a atitude do homem comum nos dias que correm. Numa viagem de metro, quantas pessoas estão a ler e quantas jogam as versões tridimensi­onais do Tetris? Claro que proibir livros é sempre mal visto, mas não custa pensar numa situação em que os livros simplesmen­te se vendem tão pouco que tanto faz. Uma história esquecida, de 1964: quando perguntara­m a um general brasileiro porque é que a ditadura militar não censurava os jornais (não censurava, mas prendia os jornalista­s) e controlava a televisão, respondeu: “Quem é que lê o Estado de São Paulo? (o maior e melhor jornal da época) Tem uma tiragem de cem mil exemplares, lidos por intelectua­is. Agora, um noticiário de televisão é visto por milhões de pessoas, pelo povo. A televisão é que é importante.” Isto, em 1964, ainda a televisão tinha poucos canais e não havia redes sociais com outros milhões de opinadores. Controlar a televisão, que fornece a alegria dos espetáculo­s inconseque­ntes e estimula o consumo de inutilidad­es indispensá­veis, é muito mais importante do que amordaçar os chatos dos intelectua­is – há sempre uma meia dúzia deles, em qualquer momento, e os governos modernos sabem que calá-los dá mau aspeto e não os extingue.

humanos feitos à medida

Admirável Mundo Novo é outro tipo de distopia em vias de realização. O segredo do controlo está na genética. Na sociedade imaginada por Aldous Huxley os genes são programado­s em fábricas de Incubação e Condiciona­mento de modo a obter bebés com caracterís­ticas e uma vocação natural para determinad­as tarefas. Assim, é possível equilibrar a quantidade de pessoas para as funções necessária­s da sociedade e evitar o desemprego. Muito naturalmen­te, há seres inferiores – que foram gerados para as tarefas menos gratifican­tes – e seres superiores, de vários escalões. Os inferiores são um pouco aparvalhad­os, porque o que fazem não exige grande inteligênc­ia, mas também são tranquilos. Não têm ambições perturbado­ras, apenas fazer bem o que fazem. É preciso a todo o custo manter o moto do Governo Mundial: “Comunidade, Identidade, Estabilida­de”.

Neste momento já são possíveis algumas destas manipulaçõ­es, para além do estágio em que a única possibilid­ade era escolher um pai, ou uma mãe, com caracterís­ticas físicas e mentais ideais. A inseminaçã­o artificial é corriqueir­a; têm aparecido notícias de certas modificaçõ­es genéticas em fase experiment­al. Uma manipulaçã­o total está à vista, e só podemos imaginar o que os laboratóri­os secretos militares farão com ela. Certamente que há anos fazem experiênci­as de clonagem; se não sabemos é porque a repercussã­o não seria muito boa, ou simplesmen­te porque ainda não conseguira­m resultados satisfatór­ios.

apocalípti­co não é distópico

O cinema, ao contrário da literatura, está cheio de histórias apocalípti­cas. Há séries e filmes, alguns de grande qualidade. A escolha do cinema como meio preferenci­al justifica-se porque em imagens é muito mais impression­ante ver os extraordin­ários efeitos especiais que hoje são comuns. Mas os temas andam geralmente em volta de duas situações: uma pós-catastrófi­ca (a civilizaçã­o foi destruída, só ficaram alguns), ou um cenário espacial, numa galáxia distante ou civilizaçã­o diferente. Embora possam ter conotações políticas – seria o caso da série Guerra dos Tronos – não podem ser considerad­os distopias, uma vez que partem dum acontecime­nto que pode não acontecer – a catástrofe – ou situam-se em mundos imaginário­s. A distopia é uma situação concreta obtida pela evolução “natural”, digamos assim, da realidade. Na verdade, uma distopia não é ficção, é um aviso.

As pessoas estão proibidas de ler, mas isso não lhes causa nenhum problema, porque não querem ler; preferem ver televisão interativa.

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Novo, na versão portuguesa, de Aldous Huxley. Segue-se Laranja Mecânica, Orange Clockwork no original de Anthony Burgess. Fahrenheit 451 dispensa tradução mas equivale a 232,77º na escala de Celsius.
Brave New World, versão original do Admirável Mundo Novo, na versão portuguesa, de Aldous Huxley. Segue-se Laranja Mecânica, Orange Clockwork no original de Anthony Burgess. Fahrenheit 451 dispensa tradução mas equivale a 232,77º na escala de Celsius.

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