ESCREVER PARA BEBER, BEBER PARA ESCREVER: A MUSA SEDENTA
O álcool e a literatura sempre andaram muito perto. Mas por vezes – quase sempre – o primeiro destruiu a segunda.
Estava-se em 1954. William Faulkner, escritor já consagrado com o prémio Nobel e dois Pulitzer, foi ao Brasil. Durante a estada não parou de beber, cortejou incessantemente a sua anfitriã – a escritora brasileira Lygia Fagundes Telles – e passou os dias numa constante névoa alcoólica. Quando se preparava para embarcar no avião que o levaria aos Estados Unidos, terá perguntado a uma Lygia Fagundes Telles estupefacta: “Não percebo. Afinal o que é que eu vim fazer a Chicago?”
Esta última parte da história poderá ser apócrifa. Mas bem reais foram os episódios de alcoolismo de um dos maiores escritores da sua geração – o mais grave dos quais envolveu uma queimadura de segundo grau, feita pelo aquecedor de um hotel sobre o qual Faulkner adormeceu após ter bebido várias garrafas de bourbon.
Faulkner é apenas um dos exemplos mais famosos da relação entre a bebida e a literatura levada ao seu mais patológico extremo. Nunca o escondeu, de resto: “a civilização começa com a destilação” é um dos seus aforismos mais conhecidos. E sabia não estar sozinho nesta proclamação: entre sete americanos que foram agraciados com o Nobel da literatura, cinco eram alcoólicos – Faulkner, Sinclair Lewis, Eugene O’Neill, Ernest Hemingway e John Steinbeck. Mas os Estados Unidos têm outros grandes escritores que se podem incluir nesta relação íntima: Edgar Allan Poe, Thomas Wolfe, Raymond Carver, Dashiell Hammett, Jack London, F. Scott Fitzgerald, Tenesse Williams… A lista é impressionante e permite pelo menos estabelecer um padrão e algumas perguntas: como escreviam? De que modo a bebida ajudava à criação? E de que modo a poderia destruir?
O MITO
No século XX, a noção do escritor como bebedor é americana. Nenhum outro país tinha esta tradição tão vincada, que vinha até dos finais do século XVIII e se prolongou no século seguinte: basta pensar no trágico destino de Edgar Allan Poe, um notório bebedor, encontrado morto na rua em circunstâncias que nunca foram esclarecidas, ou nos testemunhos dados por Tocqueville ou Charles Dickens. A América era mesmo conhecida como a “Alcohoholic Republic”.
O consumo de estupefacientes como o ópio ou o láudano (de que é um derivado) já tinha sido proclamado por escritores como De Quincey ou Baudelaire como sendo o caminho mais curto para a musa. Indo à Antiguidade, vemos que o poeta Horácio dizia que quem bebe apenas água nunca escreverá grandes poemas. Mas a bebida sempre terá sido vista até então como uma falha de carácter e não um alargamento da perceção. De resto, o reconhecimento do alcoolismo como patologia e não como flagelo moral foi lento e só nos anos 60 do século XX começou a ter finalmente uma aceitação quer pela sociedade quer pela própria comunidade científica.
Até lá, o mito romântico do escritor-alcoólico, capaz de extraordinária produção literária enquanto consumia sem medida a sua bebida preferida foi ganhando vigor. E os próprios faziam gala dessa condição, remetendo-a por vezes para um humor brilhante, mas triste. O irlandês Brendan Behan, dramaturgo e escritor, representava com gosto, perante as câmaras de televisão, aquilo que era: uma caricatura do bêbedo irlandês, triste ou a cantar, e com uma verve e encanto sem limites. Isto, claro, de pint de Guiness na mão. Não admira que tenha dito: “sou um bebedor com um problema de escrita”. Dylan Thomas, o enorme poeta galês, viria a morrer prematuramente devido ao seu alcoolismo. Eram comuns as suas diatribes ébrias sobre qualquer assunto, a ponto de um dia ter interrompido um longo discurso e concordar: “Alguém me está a aborrecer. Acho que sou eu”.
As razões pelas quais estes e outros escritores contemporâneos viram na bebida uma companhia necessária são objeto de estudo há muito, a ponto de haver um subgénero de literatura anglo-saxónica dedicada apenas a este assunto. No essencial The Thisrsty Muse – Alcohol And The American Writer, de Tom Dardis, o autor atribui esta propensão para o alcoolismo como um escape das agruras da vida moderna, da sobreexposição do escritor e da solidão necessária ao processo criativo. É um argumento plausível, mas que pode ser aplicado a outras artes – Jackson Pollock e Francis Bacon, dois pintores maiores do século XX, eram alcoólicos. Outra das razões poderá estar fundada noutro mito, muito divulgado pelos escritores da chamada Geração Perdida (Fitzgerald, Hemingway): só é um bom escritor o escritor que bebe. E muito.
"NO SÉCULO XX, A NOÇÃO DO ESCRITOR COMO BEBEDOR É
AMERICANA. NENHUM OUTRO PAÍS TINHA ESTA TRADIÇÃO TÃO VINCADA."
A doutora Manuela Correia, psiquiatra, é mais rigorosa e ecoa os argumentos utilizados nesta altura pela comunidade médica: “A ingestão de álcool, pela sua ação ansiolítica e desinibidora, pode ser utilizada como agente habitual de redução de tensão e ansiedade, de produção de alívio e bem-estar, constituindo assim um reforço para a persistência e repetição do comportamento alcoólico. Existem também traços de personalidade que predispõem para o consumo, a que os escritores não estão isentos: personalidades narcísicas, inseguras, depressivas, ansiosas... Pode haver igualmente doença mental, principalmente a depressão e as patologias do espetro da ansiedade. E obviamente não esquecer os fatores fisiológicos e genéticos que variam de indivíduo para indivíduo e de família para família. Pela sua grande relevância, ainda devemos referir os fatores socioculturais: os hábitos, tradições, mitos e falsos conceitos que modelam a relação do indivíduo com o álcool e no caso que aqui importa, a relação do álcool com os escritores e a literatura.”
Mas falámos de escritores. E as escritoras? Num mundo dominado pelo masculino, muitas das escritoras e poetas viam na bebida uma forma de independência e até rebeldia contra o que viam à sua volta. Sarah Hepola escreve ensaios para o New York Times, Salon ou The Guardian sobre relações afetivas, maternidade e sexualidade. Dos 20 aos 35 anos esteve em quase permanente estado alcoólico, que revela nas suas memórias Blackout: Remembering The Things I Drunk To Forget. E não podia ser mais clara quanto aos seus motivos iniciais: “As mulheres que eu admirava eram as que bebiam. As desafiadoras, as que fumavam, as que vestiam calças, as que não davam o braço a torcer à História”. E muitas eram: a poeta feminista Anne Sexton, Patricia Highsmith, Marguerite Duras (que no final da sua vida consumia cerca de oito garrafas de vinho diárias), Jean Rhys ou Lillian Helmann são alguns exemplos. E o vinho era a bebida comum (com uma particular predisposição para o chardonnay – quem sabe pela pressão social de que essa seria a bebida para “uma senhora”).
POR CÁ
Em Portugal não parece haver muitos casos de escritores alcoólicos ou que usem a bebida como motor literário. Mesmo os mais marginais fazem um intervalo quando se trata de escrever. Mesmo os que amam os excessos de vária ordem parecem proteger a arte do seu estilo de vida. Os escritores portugueses que se proclamaram – e foram – grandes bebedores são, na quase totalidade, homens formados pelo axioma cultural “um homem que é homem tem de beber”. O’Neill, Lobo Antunes ou Cardoso Pires poderão ter sido tocados por este modelo. Mas quando se tratava da produção literária a coisa era diferente, como confirma Bruno Vieira Amaral, biógrafo de José Cardoso Pires: “O Cardoso Pires não bebia enquanto escrevia”, afirma o biógrafo, “ele tinha períodos de escrita intensiva durante os quais só ingeria bebidas não alcoólicas. Depois compensava, é verdade, sobretudo com whisky.” O que, sabendo a minúcia e tempo que Cardoso Pires aplicava na reescrita, não surpreende.
O que leva então os escritores à bebida parece não ter sido ainda determinado. Mas a relação entre o excesso de consumo e a produção literária é objetiva: quanto mais avançam nos anos e na ingestão quotidiana de bebidas alcoólicas, mais decai a qualidade da obra. O que na opinião da doutora Manuela Correia é normal: “No caso da produção literária este alívio de tensão e desinibição pode facilitar o processo criativo, mas não a qualidade literária. Isso é um mito. O álcool, ou qualquer outra substância que interfere com o sistema nervoso central, não dá à pessoa 'coisas' que ela não tem. Ou seja, o álcool não produz grandes escritores nem literatura, mas grandes escritores têm utilizado o álcool como meio para facilitar a sua produção literária de elevada qualidade.”
Relação perigosa e fascinante, esta. Vai ser difícil retirar o glamour da bebida a estes grandes escritores, mas sempre podemos sugerir aos que aí vêm, na esperança de mais umas boas obras para a Humanidade: se escrever, não beba. Como disse o grande biógrafo brasileiro Ruy Castro – ele próprio um ex-alcoólico – “A bebida não impediu os escritores alcoólicos de serem geniais. Mas é provável que, se não tivessem sido alcoólicos, fossem mais geniais ainda.”