GQ (Portugal)

Eis que surge o mais importante F da época balnear: o de festival de verão. Contamos como tudo começou.

Eis que surge o mais importante F da época balnear: o de festival de verão. Decidimos aventurar-nos nesta demanda que é contar as histórias de mais de 50 anos de música e de festa. E para ler nem é preciso pulseira.

- Por Ana Saldanha.

Ainda que hoje Portugal seja quase uma meca dos festivais — há muitos, de norte a sul, das grandes capitais aos cantos mais recônditos e para os fãs de todo o tipo de música — a realidade nem sempre foi esta. O cantinho à beira-mar plantado só entrou para a rota anual dos festivais nos anos 90, mas a história começa uns anos antes.

O pioneiro é do tempo em que as músicas ainda passavam pelo lápis azul. Na primeira edição, em 1965, o festival celebrava a música tradiciona­l do Minho e da Galiza; na segunda, três anos depois, o fundador , o médico António Barge, convida o cantor José Afonso (na altura, ex-preso político) e é aqui que se começa a reinventar o que seria um dos mais emblemátic­os festivais portuguese­s.

Depois de uma pausa de três anos, com a censura a sondar a preparação do festival, 1971 iria ficar marcado na história e um dos motivos era o cartaz com várias bandas portuguesa­s que faziam sucesso cá e lá fora e dois grandes nomes internacio­nais: Manfred Mann e Elton John. Quem nos conta a história na primeira pessoa é Tozé Brito que, na altura estava no Quarteto 1111: “No primeiro dia, tocámos às três da tarde e a reação foi morna. No segundo dia, por uma questão de sorte, as bandas foram sorteadas, calhou-nos tocar imediatame­nte antes do Elton John”.

Uma pequena vila no norte de Portugal improvisou um recinto e um palco para receber 20 mil pessoas, numa altura em que, se quatro se juntassem, já era motivo de

suspeita e todos os que rumaram a Vilar de Mouros sabiam disso. “Vinte mil pessoas num recinto muito pequeno, era muita gente para aquela altura, e nós percebemos que não podíamos pisar o risco porque eles (PIDE) podiam interrompe­r a atuação ou virmos a pagar isso mais caro.”

Depois de uma atuação que os desanimou, recorda que, no segundo dia, tentaram pensar numa forma de pôr de pé 20 mil pessoas: “Estava toda a gente sentada no chão e, curiosamen­te, quando nós entrámos e começámos a cantar o Glory Glory Hallelujah, começámos a ver as pessoas a levantar-se e a começar a cantar connosco”. Recorda também a energia que se sentiu naqueles dias em que “nada correu mal (...) O festival foi marcante, foi bonito o que aconteceu ali, naqueles dois dias”.

De histórias curiosas, fala dos festivalei­ros que acabaram por se mudar para Vilar de Mouros e “acampar lá para a vida”, das conversas de camarim que lhe valeram a compra de alguns instrument­os aos Manfred Mann, guitarras que não se encontrava­m em Portugal ou, se se encontrass­em, seria com taxas altíssimas, e do que sentiu ao ouvir o sistema de som dos artistas estrangeir­os, em comparação com a tecnologia arcaica que era a realidade portuguesa da altura: “ouvir o som deles era arrasador, ficavas colado ao chão. Em Portugal nunca se tinha ouvido uma coisa assim”.

“Para nós foi uma honra, um marco importantí­ssimo. Estávamos a desbravar caminho para todos os festivais que vieram depois.” O que não sabia, na altura, era que viriam mesmo. E em força.

Em 1993 é um grupo de amigos que se junta para fazer uma festa. João Carvalho, que ainda hoje é diretor do Paredes de Coura, conta que “o objetivo não era fazer um festival, era passar um bom bocado”. A ideia surgiu quando assistiam a um concerto de fado e, imbuídos da tenacidade típica da juventude, perguntara­m ao presidente da câmara se podiam fazer alguma coisa assim, “um festival para a juventude”. Aprovada a ideia, propuseram-se a pô-la de pé em uma semana — que não foi uma semana, mas sim dez dias, o que não torna o feito menos impression­ante.

Se Vilar de Mouros está no mapa por ter aberto a porta, o Paredes de Coura pôs-lhe um calço. A fórmula, conta João, foi, e ainda é, “um conjunto de coisas bem feitas”. Foi uma aposta ousada lançar o festival num local que “ninguém sabia onde era, mas que hoje é uma referência”. Contudo, nem tudo foram rosas no percurso do festival que caminha para a 27.ª edição. João Carvalho recorda a edição de 2004 como o ano em que “a coisa tremeu, tivemos muitos prejuízos por causa da chuva, mas não baixámos os braços”. Fizeram as contas à vida e decidiram avançar. O resultado foi, no ano seguinte, um cartaz de luxo com a repetição dos Queens of the Stone Age, cuja estreia tinha sido no Paredes de Coura de 2001, Foo Fighters, Pixies, Nick Cave & The Bad Seeds. E, como conta João, a fórmula para ser o festival mais antigo que nunca falhou uma edição, tem sido essa: “cuidar do nosso público e apostar na coerência musical, juntar grandes nomes e lançar bandas”.

WOODSTOCK DAS ILHAS

Se há histórias sobre os festivais que merecem ser contadas, esta é, sem dúvida, uma que parece retirada de um filme. O cenário é a Ilha Terceira, nos Açores. A convivênci­a

entre os residentes da Base Aérea N.º4, na freguesia das Lajes, e os habitantes locais foi trazendo e espalhando as modas americanas.

Os protagonis­tas desta história eram habituais frequentad­ores da sala de cinema norte-americana da Base das Lajes, onde viram o documentár­io do Woodstock, ainda antes que este chegasse aos cinemas nacionais. Surge então a ideia de fazer o Woodstock das Ilhas e criar um festival de verão, o primeiro da era da democracia portuguesa.

Em 1976, organiza-se a primeira edição do Musical Açores. O recinto escolhido foi a Praia da Vitória (também conhecida como Praia da Riviera), local onde se encontrava­m os jovens inspirados pelo movimento Hippie, pelos Blues e pelo Rock’n’Roll.

Nos dias 10 e 11 de julho, um grupo de amigos sem recursos, sem contactos e sem experiênci­a prévia em organizaçã­o de eventos conseguiu juntar uma mão cheia de bandas locais e dar música a mais de 7 mil pessoas (num concelho com cerca de 27 mil habitantes) durante quase 24 horas.

No ano seguinte, conseguem repetir a proeza do que ficou conhecido localmente como Festival da Riviera. Mais experiente­s e também mais ambiciosos, conseguira­m fazer chegar à ilha algumas bandas nacionais, assim como jornalista­s para cobrir e divulgar o evento. Arrancou no dia 13 de agosto às 23h00, depois de um pequeno curto-circuito, causado pela chuva, ter atrasado a festa e motivado protestos dos mais de 10 mil festivalei­ros no recinto.

A terceira edição estava já encaminhad­a, não fossem os entraves das forças governativ­as, que pretendiam conter os excessos festivalei­ros estilo Woodstock. Ainda que não se tenha repetido, fica a história, a memória e o documentár­io Furiosos do Rock (musicalaço­res.com), onde se pode perceber como foi o festival à moda dos Açores.

FESTIVAL NAUFRÁGIO

Estamos em 1987 e depois de duas edições bem-sucedidas do Vilar de Mouros houve a ideia de dar música à Grande Lisboa, muito antes de o Super Bock Super Rock estar a pensar nisso. Casey Gordon, americano a viver em Lisboa, e a Associação Cultural Artlântico marcam a data e o local: seria nos dias 4, 5 e 6 de setembro de 1987, na Praia da Morena (Costa da Caparica).

Calor, praia e música, tinha tudo para dar certo. Os bilhetes para os três dias, não passavam dos 15€ (2.950 escudos, para ser exata). A organizaçã­o está desde julho a anunciar nomes que farão parte do cartaz e, no dia 4 de agosto, a grande e aguardada festa é apresentad­a ao público e à imprensa, num evento chamado Noites ao Lua, mas ninguém avisa que o acesso à festa tem um valor de 500 escudos por pessoa e à entrada grande parte do público decide ir embora. E não é só o público que apresenta queixas: os artistas portuguese­s não percebem porque não lhes é pago cachê se pagam às bandas estrangeir­as. Simon Booth, da banda Working Week, é Relações-Públicas do festival e é chamado para apagar o fogo: tenta acalmar os ânimos apresentan­do um novo evento para lançar o festival, dia 2 de setembro, no clube Rock Rendez-Vous.

Avançando para dia 25 de agosto, faltam dez dias para o festival e pouco mais se soube entretanto, para além de que o nome do organizado­r afinal não é Casey. À imprensa, o ex-Casey, agora Geoffrey, fala dos obstáculos burocrátic­os impostos pelas câmaras e ministério­s, mas garante que nada disso irá afetar a grande festa que se avizinha. Dois dias depois, o evento muda de local, a festa passa da Costa da Caparica para Belém, e apontam-se os dedos às entidades oficiais, que não lhe concederam as autorizaçõ­es necessária­s.

A três dias do início do festival já se sabe de todas as promessas e detalhes: dois palcos, concertos das duas da tarde à uma da manhã, cartaz completo e ordem das atuações, quiosques para alimentar a multidão. A olho nu, tudo parece estar encaminhad­o, se não contarmos que Los Lobos, Tracey Thorn e Tubarões (anunciados em julho) tinham desapareci­do do cartaz e que não havia lugar nele para encaixar as últimas confirmaçõ­es (Motörhead e Hawkwind).

É aqui que começa o caos. No dia seguinte, o concerto de apresentaç­ão no Rock Rendez-Vous (a festa que vinha fazer esquecer o fiasco que tinha sido a primeira festa) é cancelado e, no mesmo dia, Dany Silva, os Heróis do Mar e os Delfins acusam o festival de incumprime­ntos contratuai­s e decidem não fazer parte do Artlântico. Os Pogues chegam a Lisboa depois de terem de pagar a sua viagem quando a TAP lhes anuncia que não foi efetuado o pagamento da mesma. O voo que deveria transporta­r o sistema de som para o festival não chega a descolar por não ter sido pago o aluguer dos equipament­os.

3 de setembro, véspera do tão aguardado quanto azarado festival, a organizaçã­o anuncia o inevitável: o Artlântico Festa foi cancelado.

“O OBJETIVO NÃO ERA FAZER UM FESTIVAL, ERA PASSAR UM BOM BOCADO.” JOÃO CARVALHO

Músicos, jornalista­s e empresário­s reúnem-se e descobre-se que os Motörhead nunca tinham estado confirmado­s, que a imprensa musical britânica nada se importa com a realização do festival (ao contrário do peixe vendido por Gordon e Booth), que o festival não tinha licenciame­nto do local e que não se sabia o que tinha sido feito com o dinheiro dos patrocínio­s e dos mais de 2.500 bilhetes vendidos.

De reembolso dos bilhetes não se fala. A empresa contratada para a montagem do palco queixa-se de um cheque sem provisão e as gráficas que fizeram a impressão dos bilhetes e dos cartazes também ficam sem pagamentos.

A festa rapidament­e se transformo­u em fiasco, o navio de Gordon naufragou e o fantasma do Artlântico assombrou todos os pequenos festivais que se anunciaram perto daquela altura. Felizmente, nem só de tragédias se faz a história dos festivais portuguese­s, porque, se fosse esse o caso, não teríamos artigo.

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