Relemos o 1984 e refletimos sobre a atualidade da distopia, no mês em que o livro comemora 70 anos.
Guardemos as efemérides, não queremos chamar a este artigo uma comemoração. 1984, de George Orwell, é um dos livros mais lidos de sempre e faz 70 anos. O que assusta é que continua tão atual que poderia ter sido escrito hoje.
Os relógios marcam as treze horas, o mundo está dividido em três megablocos (Oceania, Eurásia e Lestásia), que estão em constantes guerras entre si. No poder está o Partido Interno comandado pelo Grande Irmão. Em todas as casas há um ecrã que transmite propaganda, que nos vigia, dá ordens e capta todos os movimentos. Fala-se Novílingua, mas fala-se pouco porque as palavras foram sendo eliminadas. É ao eliminar palavras que se limita o pensamento. Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. Estamos em 1984. Mas vamos por partes. Neste caso não há perigo de spoilers porque a obra de Orwell é de um engenho tão hábil que, por mais anos que passem — e falamos de 70 —, por mais pessoas que falem dela, por mais análises e comentários que sejam escritos, haverá sempre algo para dizer.
O mundo em que vive Winston Smith, a personagem principal do famoso romance 1984, parece distante, desconectado da realidade que conhecemos, distópico e inalcançável, mas, se assim o é, por que razão as vendas disparam de cada vez que somos confrontados com um sinal de que não estamos assim tão longe de 1984?
“Quando acontece alguma coisa na cena pública ou na cena política — determinadas eleições inesperadas — há sempre
um revivalismo disso e o 1984, depois das últimas eleições nos Estados Unidos, foi encenado no teatro. Há anos que não se punha o 1984 em palco! De vez em quando, as pessoas voltam àquelas distopias dos anos 30 e 40 porque, se calhar, há ali qualquer coisa semelhante” — Teresa Botelho é professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e Investigadora de Estudos de Utopia, Ficção Científica e Cyber Literatura, e fala-nos da realidade versus universo orwelliano.
O caso mais semelhante a 1984 na vida real deu-se uns anos antes, de 1975 a 1979, com o regime do Khmer Vermelho, no Camboja. Nesta história — que de ficção não tem nada — Pol Pot, líder do regime, quis reverter o relógio para a idade média e forçou as pessoas a sair das cidades e a dedicar as suas vidas à agricultura em quintas comunitárias para criar uma utopia agrária. Primeiro, declarou que o país ia começar no ano zero, isolou a população, aboliu o dinheiro, a propriedade privada e a religião, depois, iniciou uma perseguição e execução de todos os que mostrassem algum indício de intelectualidade — muitas pessoas foram condenadas por saber uma língua estrangeira ou até por usarem óculos. Tal como em 1984, neste regime também as crianças eram incentivadas a denunciar a sua própria família sendo considerados “puros” por não estarem contaminados com ideais pré-regime.
“A ideia inicial é sempre boa, é para combater o crime e o terrorismo, mas depois criamos instrumentos que se viram contra nós. O reconhecimento facial não foi feito para classificar as pessoas de acordo com o seu comportamento social”. O sistema de pontuação a que Teresa se refere é o projeto Sharp Eyes (olhos aguçados), que está a ser posto em prática, ainda que em fase piloto, em algumas cidades chinesas: “o reconhecimento facial vai ser usado na criação de um sistema de crédito social em que a pessoa recebe pontos de acordo com o seu bom comportamento social (...). Houve uma cidade em que isso já foi aplicado e os pontos são depois publicados”. A vigilância é um tema central ao longo do livro, a par da manipulação do pensamento das massas, em grande parte através da manipulação da informação. O protagonista, Winston Smith, trabalha no Departamento dos Registos, uma secção do Ministério da Verdade, que se encarrega de alterar o passado. Este departamento está encarregue de reescrever as notícias e comunicados de modo a que todas as previsões estejam corretas. É assim que se cultiva o endeusamento do Grande Irmão. É também assim que membros do Partido podem passar a ser criminosos e traidores. É assim que se pode apagar (ou vaporizar) por completo a existência de alguém. O passado é reescrito vezes sem conta e a linha entre a verdade e a mentira, entre a realidade e a ficção deixam de existir. “O mais assustador é a capacidade que as pessoas têm de ser manipuladas dessa maneira, é por isso que isto é uma verdadeira distopia pessimista”, Teresa refere ainda que, em muitos aspetos, a distopia orwelliana se aproxima do mundo que conhecemos, mas que, ao contrário dos habitantes da Oceania, as pessoas têm noção de que “estão a ser muito mais vigiadas”. Quanto ao sucesso do livro, 70 anos depois da sua publicação, a investigadora atribui-o, em parte, à consciencialização de quem o lê e não quer que, de forma alguma, se concretize. Porque, por mais que seja uma leitura indispensável, esperamos manter esta história só no papel.
Para mais distopias na literatura, avance até à página 136.
70 anos de uma publicação dá para muitas edições, reedições e, com isso, muitas capas memoráveis. Aqui ficam quatro que espelham na perfeição o tema: a vigilância constante, não estivesse o Grande Irmão sempre de olhos postos em nós.