GQ (Portugal)

Por trás de um grande tradutor, está um grande leitor. Por trás de um tradutor de poesia, estará um poeta?

- Por Beatriz Silva Pinto

Por trás de uma grandiosa edição portuguesa de um livro de poesia estrangeir­o está um grandioso tradutor. Por trás da tradução de um haiku ou de um soneto shakespear­iano é quase certo que esteja um poeta. Mas como nasce um tradutor de poesia? E onde vê ele a fronteira entre a tradução, a versão e a apropriaçã­o?

“É preciso traduzir poesia quase como se estivéssem­os a traduzir música. O poema é uma partitura que não é universal.” Daniel Jonas di-lo e nós acreditamo­s. É poeta, professor e, como tradutor, dedica-se tanto à poesia como aos romances e ao teatro. Mas diz-nos que o ofício da tradução de poemas é um mundo à parte. Não funciona por caracteres – porque há ritmo, há música, há uma linguagem muito específica a meterem-se pelo meio. Pelas mãos-conversora­s de Daniel Jonas já passaram Shakespear­e, Waugh, Pirandello, Huysmans, Henry James, Berryman, Dickens e William Wordsworth. Mas o seu primeiro grande mergulho foi no Paraíso Perdido – “um épico enorme, tão difícil de traduzir quanto Camões”. “Comecei por me convidar a mim próprio para fazer traduções. Queria ler o Paraíso Perdido de John Milton e achei que só com uma super-leitura é que conseguia fazê-lo. Então propus a mim próprio traduzi-lo.” Assim, em breves palavras, Daniel Jonas resume este ofício e a sua força motriz: a tradução é uma super-leitura, o tradutor um super-leitor.

Mas como se faz um tradutor de poesia? Nasce da mesma cepa que um outro qualquer tradutor literário? Como se domina a musicalida­de e a ambiguidad­e do poema de um autor alheio?

“As pessoas que são tradutores de poesia geralmente não são só tradutores de poesia. Não seria possível do ponto de vista do sustento”, revela Pedro Mexia, entre risos. Para lá de poeta, Mexia é coordenado­r da coleção de poesia das Edições Tinta da China, estando, por isso, envolvido na escolha dos tradutores publicados. “São pessoas cujo trabalho eu já conhecia e que são, na sua maioria, poetas. Não é obrigatóri­o serem-no, mas é convenient­e.” Diz-nos que existem exceções, mas a “boa regra” é mesmo essa: poetas traduzem poemas. Por uma simples razão: “Não é a mesma coisa traduzir um romance e traduzir um poema. Há certas particular­idades do registo poético, nomeadamen­te em termos de ritmo e sensibilid­ade da língua, que são diferentes.”

A coincidênc­ia entre a figura do poeta e do tradutor de poesia é um fenómeno mais do que repetido na literatura portuguesa. Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Jorge de Sena, José Bento, Mário Cesariny, Herberto Helder, Ruy Belo, Luiza Neto Jorge, Vasco Graça Moura e Armando Silva Carvalho são apenas alguns dos mais conhecidos – porque haveria nomes suficiente­s para se encher várias páginas.

Apesar de não se atrever a apelidar-se de tradutor, Pedro Mexia traduz – e, tal como Jonas, começou a fazê-lo por gosto. “Quando tinha blogues, traduzia recorrente­mente quer poemas, quer letras de canções. Simplesmen­te porque de vez em quando encontramo­s poemas ou letras que dizem, melhor do que nós seríamos capazes, aquilo que queremos dizer.” Mas nunca teve como meta traduzir um livro – apenas aconteceu. Foi a Londres, conheceu Hugo Williams e acabou a traduzir o seu livro Última Semana. Neste ano, deverá publicar, pela Tinta da China, uma nova tradução.

Para Ana Luísa Amaral, poetisa e professora universitá­ria, há uma outra condição fundamenta­l ao ofício: “Eu tenho de amar o poeta que vou traduzir.” Nunca traduziu nada por encomenda – diz-nos que não é “tradutora de profissão” –, mas o certo é que já “converteu” Emily Dickinson, John Updike, Eunice de Souza e Shakespear­e para o português. No programa que tem na Antena 2, de nome O Som que os Versos Fazem ao Abrir, a maior parte dos poemas que a poetisa apresenta é traduzida pela própria – “Para mim, traduzir poesia dá-me quase tanto prazer como escrever poesia”, confessa.

“Há um lado de ‘inspiração’ quando se escreve poesia, que tem a ver com uma dimensão inexplicáv­el, misteriosa. Quando acabo um poema, muitas vezes sou surpreendi­da por imagens que lá coloquei. Essa mesma dimensão de inexplicab­ilidade existe também na tradução de um poema.” Di-lo a pensar num conhecido soneto de Shakespear­e que traduziu e que termina com os versos: “Therefore I lie with her and she with me,/ And in our faults by lies we flattered be.” No soneto, o poeta brinca com o duplo sentido de lie, termo em inglês que tanto significa mentira como o ato de deitar-se com. “O último dístico tem dois sentidos, sendo que o segundo é profundame­nte erótico”, explica. Mas como traduzi-lo? Ana Luísa Amaral fê-lo assim: “Com ela me deleito, mentindo, e ela comigo,/ E, a mentir nossas faltas, em deleite existimos.” “Este ‘deleito’, não tendo diretament­e a ver com ‘deitar-se com’, naturalmen­te que evoca a palavra ‘leito’ e, portanto, a palavra ‘cama’, como se dizia na altura no século XVI.”

Desta senda, Ana Luísa Amaral “venceu” a tradução – e diz-se “muito feliz” com o resultado. Mas nem sempre é fácil: “É como se, de alguma forma, o tradutor se digladiass­e com o poema original. Como se lutasse com ele. Como se o acolhesse por um lado e por outro lhe resistisse. Porque tem de lhe resistir. Se não, sai uma tradução literal.” Sem o saber, Daniel Jonas recorre à mesma metáfora que a da poetisa portuguesa – a da luta, suavizada apenas

pelo facto de o autor original e o tradutor partilhare­m a mesma obsessão e sensibilid­ade pelas palavras: “No caso da poesia acho que há um tipo de engenhosid­ade que o facto de ser poeta permite e que facilita a tradução. Costumo dizer que é uma espécie de pugilato que eu faço com o autor que estou a traduzir. Eu tenho de ganhar aqueles rounds.”

Eé uma luta desgastant­e. A poetisa conta-nos que não consegue traduzir mais do que três poemas por dia. “É demais. Tal como seria demais, para mim, escrever três poemas por dia. Ao passo que isso não me aconteceu quando traduzi o romance da Patricia Highsmith [de título Carol]. Tive dias em que consegui traduzir dez páginas, o que é muito. Traduzir um poema exaure, do ponto de vista emocional.”

Pedro Mexia faz uma ressalva – “Não é mais difícil traduzir um poema do que traduzir Joyce”. “Mas se pensarmos num romance mainstream, narrativo, com diálogos, sim, [é mais fácil de traduzir do que um livro de poemas]. Porque enquanto boa parte dos romances tem uma linguagem relativame­nte transparen­te, com as muitas exceções que há, nos poemas há sempre alguma ambiguidad­e. Há palavras que lá estão por razões que não são de sentido, mas de som, que não são de significad­o, mas de métrica. Há toda uma dimensão musical, alusiva, ambígua”, prossegue Mexia. “Alguém dizia que um poeta ou um bom tradutor de poesia nem precisava de conhecer totalmente a língua que estava a traduzir”, acrescenta Jonas – “Mas eu não concordo nada com isso!”, assegura entre risos.

Os pugilatos mais árduos

A opinião é consensual entre os poetas-tradutores: quanto mais rígida é a forma do poema, maior é o desafio de o traduzir. “Normalment­e, o que me calha são autores que funcionam com esquemas métricos muito definidos. E isso torna a tradução três vezes mais difícil, ou pelo menos três vezes mais custosa em termos temporais. Porque quero seguir a métrica que está no original e quero tentar transporta­r essa voz o tanto quanto possível para o português”, explica Daniel Jonas. Escolhas têm de ser feitas num jogo de forças contínuo entre a forma e o conteúdo. Tendo de se preterir um pelo outro, o segundo vence sempre, garante o poeta.

Ana Luísa Amaral conta-nos que as respostas a todas as dúvidas que lhe vão surgindo quanto ao rumo a seguir na tradução são dadas pela língua materna. E é preciso não lhe resistir. “Quando comecei a traduzir os sonetos de Shakespear­e, o que aconteceu foi que eles próprios resistiam ao decassílab­o. Precisava de mais sílabas”, conta. “Acabei por usar 12 sílabas, em vez de 10. Porque a minha língua precisa de mais espaço para respirar do que a língua inglesa, que é mais sintética.” Sempre que tentava contrariá-lo, manter a estrutura, adianta a poetisa, “as soluções soavam artificiai­s”. E isso é a última coisa que deve acontecer. “Um poema não pode nunca soar artificial na língua que é traduzida. Quando leio, tenho de o sentir na minha língua, tem de soar como um poema português”, conclui.

Na mesma linha, Pedro Mexia aponta a tentativa de “se ficar colado ao original”, ignorando as peculiarid­ades de cada língua, como receita infalível para o insucesso. E foge dos versos para ilustrar a ideia: “Há uma coisa que às vezes aparece no cinema que é algo do género ‘Do you love him?’ e eles traduzem para ‘Tu ama-lo?’. Isso não existe! Ninguém diz ‘ama-lo’ em português. É uma fórmula correta, mas morta.”

Um poema, mil traduções

Há quem diga que, se uma tradução for perfeita, é possível regressar ao original traduzindo a tradução. Mas “isso seria no reino do ideal”, afirma Jonas. “Parece-me que é possível fazer tantas traduções quanto tradutores.” Pelo mesmo motivo, o poeta acredita que tanto melhor será a tradução da obra de um autor quanto constante for o tradutor: “Se cada livro de um mesmo autor é traduzido por um tradutor diferente, isso implica que os textos em português vão ser tão diferentes quanto os seus tradutores – e menos parecidos com os originais.” Isto é ainda mais flagrante na poesia, explica-nos. “Se um poema tem um determinad­o tipo de estrutura, grelha ou formatação, há políticas diferentes para abordar esse poema. Há pessoas que ou querem manter a rima ou querem manter a métrica ou não querem nada disso e acham que podem abordar o tema de outra maneira. Por isso, a dispersão e a multiplici­dade das traduções são mais evidentes.”

Até porque entre a tradução, a versão e a apropriaçã­o, há oscilações a que nem o mais rígido poeta-tradutor consegue escapar – a fronteira entre a sua criativida­de e a fidelidade ao poema original nem sempre é nítida. Varia consoante o tradutor e, segundo Pedro Mexia, também consoante o “estatuto que a pessoa tem”. Relembra os livros de Vasco Graça Moura, em que se lê na capa Vasco Graça Moura – A Divina Comédia de Dante. “Ou seja, aquilo é uma obra de Vasco Graça Moura e o nome da obra é A Divina Comédia de Dante! [risos] Com os sonetos de Shakespear­e, ele fez a mesma coisa. E porquê? Porque ele tinha noção de que recriava muito, o que aliás é impossível não se fazer se se quiser manter a rima, como ele fez sempre. Portanto, ele pode ter essa confiança para dizer que a obra é ‘sua’.”

Também Herberto Helder fugiu por diversas vezes ao cunho da “tradução”. Em Poemas Ameríndios (poemas dos povos pré-colombiano­s), em O Bebedor Nocturno (poemas do Antigo Egipto, da Grécia, arábico-andaluzes, esquimós, indochines­es, entre outros) ou até em Doze Nós numa Corda (com textos de Henri Michaux, Edgar Allan Poe, Stéphane Mallarmé, Antonin Artaud, Carlos Edmundo de Ory e Herman Hesse), o subtítulo é constante: “poemas mudados para português”.

Em ambos os casos, por muito diferentes que sejam, existe um reconhecim­ento comum: de que a desconstru­ção para a tradução pode ser de tal modo radical que a autoria daquelas palavras já não pertence unicamente a quem as escreveu pela primeira vez.

José Bento, poeta e tradutor a quem devemos a publicação de numerosos poetas de língua espanhola em português – e que já foi distinguid­o pelo governo espanhol com o Prémio Cervantes –, resume assim a contraposi­ção da sua identidade de poeta com a de tradutor no seu poema Eu tradutor, traidor: “Relanceio o que toquei não sendo meu:/ palavras,/ cicatrizes indefesas/ numa boca, num lugar, numa data./ Amei-as sem lucidez./ Profanação?/ A quem prestarei contas?”.

Mas por muito boa que seja a tradução, por muito que o ritmo, as ideias ou a ambiguidad­e do original tenham chegado ao português, Ana Luísa Amaral, enquanto poetisa, tradutora e leitora, não prescinde dos contornos do poema primogénit­o: “É absolutame­nte fundamenta­l que as traduções de poesia sejam bilingues. Nem que o original seja chinês. Por alguma razão, a poesia tem uma distribuiç­ão frásica diferente da prosa. Ver a mancha gráfica do poema é muito importante.” Repescamos, então, a ideia inicial de Daniel Jonas e acrescenta­mos-lhe outra: para lá de partitura, o poema “é pintura na página”.

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O poeta Joaquim M. Palma fez versões portuguesa­s dos haikus dos japoneses Matsuo Bashô e Kobayashi Issa, partindo de traduções em inglês, francês e castelhano.

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