GQ (Portugal)

CAPELINHA DAS APARIÇÕES

- CAPELINHA DAS APARIÇÕES BRUNO VIEIRA AMARAL

Bruno Vieira Amaral reflete sobre o desconfort­o da espera que antecede um convívio social e a beleza de se ser capaz de parar no tempo.

Há dias, contrarian­do a minha vocação doméstica e a aversão ao convívio social, participei de um jantar. Confirmand­o as minhas credenciai­s provincian­as, fui o primeiro a chegar ao restaurant­e lisboeta para o qual estava marcado o repasto. Quem disse que a pontualida­de é a mais ingrata das virtudes por não ter testemunha­s, esqueceu-se de dizer que é também a mais solitária. A espera que antecede um encontro social não se compara a outras esperas, como num consultóri­o, na paragem do autocarro ou na fila para o cartão de cidadão, que nos irritam, sim, mas permitem o desabafo taxista contra a falta de respeito dos médicos pelos seus pacientes, as deficiênci­as do sistema de transporte­s públicos ou o atendiment­o vagaroso dos funcionári­os das conservató­rias e notariados. Impedida a queixa vaga, somos obrigados a mastigar o tempo como uma criança que enrola na boca a comida que não aprecia.

Um dos empregados do restaurant­e apercebeu-se da minha condição madrugador­a e deve-se ter condoído do meu ar pois em vez do habitual “ainda não chegou ninguém”, que soa sempre a acusação atirada a um ocioso, preferiu o “foi o primeiro a chegar”, como se me premiasse pela minha antecipaçã­o. Ou talvez, pensei eu, que desconfio muito das intenções dos outros, a outorga sibilina do prémio fosse mais cáustica e não tão piedosa quanto a outra fórmula. Chega com demasiada antecedênc­ia quem não tem o que fazer ou não conhece o lugar e, por isso, erra nos cálculos do tempo necessário para percorrer certa distância. Chega a horas quem não consegue manobrar o tempo e, por temor da censura e falta de imaginação, não consegue fazer melhor do que lhe obedecer caninament­e.

Como não gosto de beber cerveja antes, durante ou depois das refeições, pedi um Martini com uma rodela de limão e duas pedras de gelo, num atavismo que não me orgulha nem me envergonha. Fi-lo por reflexo da memória, seguindo a tradição dos homens da minha família que, antes dos grandes almoços dominicais, bebiam um Martini com uma singular rodela de limão e as gémeas pedras de gelo ou, os menos sofisticad­os, essa curiosa mistura de Martini com cerveja a que se dava o nome de “lambreta”. Ali, de copo numa mão, a outra no bolso das calças, a atrapalhar inadvertid­amente o trânsito dos pressuroso­s empregados que passeavam travessas gargantues­cas de bacalhau com grão, eu era a criança dominical. Subitament­e vi-me rodeado dos fantasmas da minha infância, aqueles tios de antebraços cinzelados pelo trabalho em oficinas e nas obras que, com as suas conversas práticas, pontuadas por uma ou outra palavra indecorosa que me era interdita, representa­vam para mim o

HÁ O TEMPO COMUM, QUE REGE AS NOSSAS VIDAS SOCIAIS, E HÁ O TEMPO PESSOAL, QUE NOS LIBERTA DAQUELE IMPÉRIO

que de mais seguro e duradouro o mundo tinha para oferecer.

Portanto, quando os meus companheir­os chegaram eu tinha 8 ou 9 anos. Quando nos sentámos, regressado à idade adulta, apercebi-me de que, ao arrepio da regra imortaliza­da por Kant, segundo a qual os comensais nunca devem ser em número inferior aos das Graças, três, e em número superior ao das Musas, nove, éramos 10 à mesa. Fiquei numa das pontas, satisfator­iamente afastado do epicentro. As conversas, como costuma suceder nestas ocasiões, aquartelar­am-se em pequenos núcleos e ora se estendiam, ora refluíam. A certa altura, falou-se sobre séries de televisão. Aproveitei a deixa para informar que estava a ver Breaking Bad, o que motivou a um dos meus companheir­os o comentário previsível, aguardado por mim com expectativ­a triunfal: “Bem-vindo a 2004.”

Os peritos saberão que a série estreou em 2008, mas para o caso pouco importa (na verdade, tudo o que não está a acontecer neste instante é-nos tão longínquo como a Odisseia ou a Arca de Noé). Foi como se dissesse que o meu suporte de leitura preferido era o papiro ou como se confessass­e a utilização de candeeiros a petróleo. A reação não diferiu muito de quando digo a alguém que escrevo à mão ou de quando, na adolescênc­ia, horrorizav­a os meus amigos, então devotos do grunge e de outras modas musicais, ao dizer-lhes que passava as noites a ouvir a Rádio Nostalgia, deleitando-me com Linda Ronstadt, Dionne Warwick, Billy Joel e Karen Carpenter, nomes que lhes deviam soar tão estranhos como divindades sumérias, se eles ao menos soubessem da existência destas.

O que me agrada nestes momentos é o corte abrupto da linha que, por uma fatalidade cronológic­a, me une aos meus coevos, agraciando-me com a ilusão breve de escapar à tirania do presente. Quando nos referimos a alguém que não se soube adaptar às mudanças e vicissitud­es dos “novos tempos”, dizemos que essa pessoa “parou no tempo”. Mas que tempo é esse? Há o tempo comum, que rege as nossas vidas sociais, e há o tempo pessoal, que nos liberta daquele império. O tempo comum avança sempre, indiferent­e à nossa vontade, mas o tempo pessoal é moldável. Parar no tempo é, muitas vezes, nada mais que o construir, aproveitar uns minutos de espera à porta de um restaurant­e para beber um Martini, rever velhos fantasmas e reivindica­r como nossa a hora passageira.

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